UOL
Emanuel Colombari
Uma corrente do bem, com elos na torcida e na diretoria do São Paulo, fez com que uma torcedora do clube voltasse a andar depois de perder os dois pés. E ainda ajudou mais uma centena de outras pessoas que precisavam de cadeiras de rodas.
Luta contra uma doença autoimune Aos 26 anos, Letícia Fabri passou mais tempo hospitalizada do que qualquer pessoa gostaria. Aos 7 anos, a paulistana foi diagnosticada com trombocitopenia imune primária, uma doença autoimune que causa redução no número de plaquetas — logo, baixa a imunidade. A doença não é hereditária, mas o irmão mais velho e o pai também foram diagnosticados.
“Quando eu era pequena, vivia internada. Meu irmão mais velho descobriu antes de mim, com 1 aninho. Meu pai descobriu com 50 anos. Não era para ser hereditária, mas aconteceu e até hoje a gente faz estudos para descobrir por que os três tiveram. Desde pequeno, a gente vive internado”, contou Letícia.
Convulsões e parada cardíaca Passadas as internações da infância e da adolescência, a situação da família de Letícia se agravou em 2017. Em fevereiro, o pai morreu, diagnosticado com uma bactéria no sangue. Dois meses depois, aos 23 anos, ela contraiu uma meningite bacteriana. “Eu estava trabalhando e comecei a passar mal. Vim direto para casa, estava com o corpo bem cansado. Quando cheguei aqui em casa, minha mãe pediu ambulância porque eu vomitava e desmaiava, não conseguia levantar para ir até o carro na garagem”, lembra.
Era um dia de chuva em São Paulo. Com muito trânsito nas ruas da cidade, a ambulância levou quase duas horas para chegar à casa da família Fabri. Levada para um hospital, Letícia deu entrada com sinais vitais fracos, contabilizando três convulsões e uma parada cardíaca. Na ocasião, foi reanimada e levada a uma UTI, onde passou 15 dias intubada. Apesar do diagnóstico, Letícia recebeu alta sem sequelas. Até que, nas próprias palavras, “aconteceu tudo de novo” no ano seguinte: passou mal e apresentou os mesmos sintomas. “Eu já me liguei. Em vez de ir para casa, fui direto para o hospital”, contou.
Na segunda vez, Letícia mais uma vez foi intubada e passou duas semanas internada. Acordou se sentindo bem, mas recebeu o diagnóstico de uma pneumonia bacteriana, “talvez a mesma bactéria da meningite” e encarou mais 45 dias de intubação. Veio então uma infecção generalizada. Perda de visão e de audição. E pés amputados Ao despertar, Letícia já vivia outra vida. Havia perdido a visão por causa de uma hemorragia. A audição havia sido profundamente afetada por causa da medicação. A infecção havia provocado necrose nos dois pés. Com algum tempo, a visão foi recuperada e a audição voltou com a ajuda de aparelhos auditivos. Mas os pés precisariam ser amputados.
Letícia sentia os pés duros, e soube que a situação era grave ao ver o gesto de um médico simulando uma serra, indicando que os membros seriam cortados. Família e equipe hospitalar se prepararam para dar a notícia, mas a jovem não se abalou. Eu estava animada para sair [do hospital]. Minha mãe não queria dar a notícia. No início, disseram que iam ter que amputar só os dedos. Depois, o pé. Depois, a perna. Minha mãe não queria contar porque estava com medo da minha reação.
Sem dinheiro para comprar próteses “Uma semana depois, o médico agendou a cirurgia. Para a minha família, acredito que foi muito mais difícil do que para mim. Minhas tias tiveram depressão, ficaram muito abaladas. Mas percebi que minha mãe e meu irmão estavam ali, superfortes. Se eu caísse, eles cairiam também.” Não que o início tenha sido simples. Letícia lembra que a própria aceitação foi “bem difícil” no começo. Ainda internada, porém, a jovem começou a se preocupar com as próteses que teria que usar — até então, sem saber que uma prótese para cada perna no seu caso custaria pelo menos R$ 23 mil.
“No hospital, eu já estava preocupada em saber onde iria para conseguir próteses. Olha como eu sou: imaginava que uma prótese custava R$ 5 mil. Depois tomei um baque muito grande, não tinha condição de comprar na época.” São Paulo entra na história.
Ainda sem as próteses, Letícia passou a usar uma cadeira de rodas para se adaptar à nova vida sem os pés. Nas redes sociais, ela começou a compartilhar com alguns seguidores — poucos, até então — seu novo cotidiano. Passeios com as amigas, os penteados, as tatuagens, a vida em família, a torcida pelo São Paulo.
E foi graças a uma das postagens que amigas de uma prima entraram em ação. Elas conheciam o goleiro Sidão, que defendeu o São Paulo entre 2017 e 2018, e fizeram contatos para que Letícia fosse conhecer o CT da equipe. O jogador apresentou os companheiros à Letícia, que ganhou uma camisa autografada para que pudesse rifar. A ideia era levantar o dinheiro para as próteses — a campanha de arrecadação on-line, até aquele momento, talvez não fosse suficiente.
A corrente do bem se forma Anos antes de ter os pés amputados, Letícia teve seu primeiro emprego registrado em uma empresa chamada Opção Etiquetas. Ao saberem da situação da ex-funcionária, duas das sócias do comércio, Matilde Alves e Gabriela Casagrande, apresentaram a jovem a Willliam Lin, diretor do Instituto I9c. A instituição se dedica a questões voltadas à neurociência e reúne profissionais como médicos, terapeutas e psicólogos.
Em parceria com o Projeto Abraço (que busca mobilizar recursos a diversas entidades assistenciais) e com o Rotary Club Brasil-Taiwan, o instituto iniciou uma campanha chamada Lacres do Abraço. O objetivo não era simples: arrecadar 12 mil garrafas pet cheias de lacres de latas (os anéis) para chegar ao valor das próteses.
Após um ano e quatro meses de campanha, um torcedor são-paulino chamado Carlos Port soube da arrecadação e levou o fato para dentro do clube. Além de divulgar a história de Letícia entre torcedores, Port também contou o caso a Homero Bellintani Filho, conselheiro tricolor. Bellintani levou a jovem para conhecer o Morumbi. Depois, ele e a esposa, Wanessa Abadié, entraram de cabeça na campanha, inclusive ajudando com sessões de fisioterapia.
Fim da campanha: enfim, as próteses.
A repercussão não apenas fez com que a torcida do São Paulo abraçasse Letícia nas campanhas e nas redes sociais, como ainda trouxe dois novos nomes: a jornalista Leniza Krauss e o empresário Nelson Nolé. Uma reportagem de Leniza na TV Record sobre o caso chegou a Nolé, dono da Conforpés, empresa de Sorocaba (SP) que fabrica próteses ortopédicas.
Em novembro de 2020, dois anos após as amputações, Letícia recebeu próteses para os pés, doadas pela empresa de Nelson Nolé. Era o fim de uma campanha bem-sucedida de mobilização.
Aquele dinheiro que Letícia havia arrecadado lá no início, com um crowdfunding, foi usado para o pagamento despesas referentes às primeiras sessões de fisioterapia na AACD, como combustível e estacionamento. Já os anéis de lata que foram recolhidos viraram 140 cadeiras de rodas para serem doadas, em parceria do São Paulo com o Projeto Abraço. Ou, como Letícia resume, “uma coisa foi ligada a outra e formamos uma corrente do bem”. “Consegui as próteses por causa da campanha. A campanha foi um sucesso, um monte de gente ajudou.”
“É muito ruim alguém olhar para a gente com olhar de pena” Hoje, Letícia Fabri tem 118 mil seguidores no Instagram e 170 mil no TikTok, onde compartilha as experiências da vida. Mas não foram apenas fãs nas redes sociais que ela ganhou ao longo desse período. “No início, foi muito complicado. Meu ex terminou comigo quando eu tive alta. Pediu desculpas, ficou mal, mas não soube lidar com a situação. Para mim, foi muito difícil, muito complicado. Eu sempre trabalhei, fui atrás de minhas coisas”, conta a jovem.
Depois, aprendi a ser livre com a cadeira de rodas. Eu não deixei isso me abater. Desde que voltei para casa, falei para minha mãe: ‘vou para shopping, balada, barzinho’. Fui para rodeio, viajei, tudo com cadeira de rodas. Às vezes, eu acabo esquecendo que antes eu andava. Mesmo com as experiências dos últimos anos, Letícia diz que não deixou de viver a vida com leveza. E assim como ela aprendeu com a modelo Paola Antonini (que usa uma prótese na perna esquerda e tem 2,7 milhões de seguidores no Instagram), hoje usa as redes sociais para compartilhar sua rotina.
“Eu percebi que as pessoas que começaram a me seguir viram que eu não fazia vídeos pretensiosos. Eu sempre fui muito de brincar com a minha mãe, eu gravava muito com ela. As pessoas perguntavam como eu conseguia levar a vida tão de boa. Percebi que precisava trazer isso mais para a sociedade. As pessoas enxergam a deficiência como uma coisa ruim. Eu não, eu sou o contrário: acho que todas as mudanças são válidas”, conta. “Eu estive dos dois lados. Do lado de quem teve a vida tranquila e de quem mudou tudo para virar deficiente. Eu consigo mostrar para um lado como o outro lado enxerga as coisas. É muito ruim alguém olhar para a gente com olhar de pena.”
LEIA TAMBÉM:
- Em alta no São Paulo, André Silva descarta rivalidade com Calleri, mas diz: “Acredito em meritocracia”
- Basquete Tricolor conquista vitória emocionante contra Fortaleza no NBB
- O que Lucas Moura disse aos atletas do sub-20 do São Paulo em visita a Cotia antes da final
- Jogadores do São Paulo concluem exames no CT, e Luiz Gustavo treina no campo sem limitações
- Hernan: Bahia prepara oferta de R$ 42 milhões por Rodrigo Nestor