SãoPaulo F.C.
Michael Serra
Craque foi anunciado pelo Tricolor no dia 1º de abril de 1942.
O ponto de virada na história do São Paulo Futebol Clube foi a contratação de Leônidas da Silva, o “Diamante Negro”, o “Homem-Borracha”, o “Magia Negra”, em 1942. Não que o destino dos são-paulinos não fosse a grandeza, mas o ídolo acelerou o processo como nada antes dele havia feito. Transformou o “Clube da Fé” em uma agremiação nacional, verdadeiramente gigante.
O atleta foi anunciado como jogador do São Paulo em entrevista a Geraldo José de Almeida na Rádio Record, veiculada “ao vivo”, a partir das 18h40 do dia 1.º de abril de 1942 no programa Record nos Esportes.
A Folha da Noite, do mesmo dia e publicada horas antes, registrou que Leônidas seria o destaque do especial radiofônico e questionou se ele ficaria no Flamengo ou se mudaria para o Palestra, por exemplo. Em nenhum momento apontou o Tricolor como destino do atleta. Quando foi revelada a transferência, o contrato dele com o “Mais Querido” já estava pronto, assinado e datado de 31 de março.
A transação seria concretizada, ao todo, por incríveis 200 contos de réis. Uma verdadeira fortuna. Para se ter ideia do valor, a loteria federal do dia 4 de abril de 1942 era no montante de 300 contos – e a maioria dos prêmios eram na faixa dos 200 contos. Ou seja, da mesma forma que ninguém acredita ser possível ganhar na loteria, ninguém acreditou que Leônidas havia sido contratado de fato, – principalmente pela data do anuncio, o “dia da mentira”.
Seria “pegadinha”? Aliás, o termo correto na época seria “trote”. Todavia, a dificuldade de aceitação não se dava somente pela quantia de dinheiro que seria envolvida, mas pelo fato de que, ainda que Leônidas fosse o melhor jogador brasileiro em todos os tempos, tendo levado a Seleção nacional à semifinal da Copa do Mundo na França, em 1938, tornado-se artilheiro da competição e conquistado o apelido de “Homem-Borracha” devido a extrema habilidade com a bola nos pés, o craque estava sem atuar nos gramados, de modo oficial, há quase um ano.
Por problemas legais com a junta de serviço militar, o atleta ficou afastado do Flamengo por oito meses e muitos consideravam que ele já estava “acabado” para o futebol. Contudo, “Leônidas ainda era Leônidas”, o que para aquele período da história significava ser o homem mais famoso do país, superando até mesmo Getúlio Vargas e ficando atrás somente, e talvez, de figuras quase divinas, como santos e afins.
Como uma verdadeira estrela de cinema (aliás, em 1951 o jogador chegou a realmente atuar nas telas de cinema, no filme Suzana e o Presidente, de Ruggero Jacobbi), Leônidas foi o primeiro atleta brasileira a virar garoto propaganda, tendo ilustrado publicidades da Goiabada Peixe, dos cigarros Sudan, do televisor Philco e, claro, do famoso chocolate Diamante Negro, dentre tantas outras peças do mercado.
Não foi de se estranhar, então, todos os fatos inusitados dessa contratação.
Leônidas era um sonho antigo do Tricolor. Em 1939, quase dois anos e meio antes da aspiração se tornar realidade, o jornal A Gazeta noticiou que o São Paulo pretendia gastar 100 contos para leva-lo, então, à Rua da Mooca. Ficou apenas como nota. Na realidade, vários clubes haviam concorrido para obtê-lo no passado. O Fluminense havia chegado a ofertar, certa vez, 150 contos de reis ao Flamengo, proposta prontamente rejeitada.
Em 1942, porém, o processo de negociação deu certo e tudo foi muito rápido, pelo que se tem registro. Ao que parece, tudo começou quando Manuel Pereira Araújo, o Manezinho Araújo, famoso músico pernambucano conhecido como o “Rei da Embolada” confidenciou ao patrão Paulo Machado de Carvalho, dono da Rádio Record, que Leônidas da Silva estava a procura de um clube para jogar.
O “Dr. Paulo” estava afastado dos cargos diretivos do Tricolor por vontade própria, mas ao ouvir o relato do compositor, que viveu por muitos anos no Rio de Janeiro e que era amigo próximo do craque, não pensou duas vezes e telefonou para o presidente do São Paulo, Décio Pacheco Pedroso.
“- Presidente, achei o nosso craque!
– Como? Que craque?
– O Lêonidas da Silva.
– Enlouqueceu, Paulo?
– Nao. Ele está parado no Rio. Brigou definitivamente com o Flamengo.
– Mas Paulo, um jogador como Leônidas só vem por uns 200 contos de réis.
– É isso que nós vamos pagar, presidente”.
Os tricolores não perderam tempo! Na segunda-feira, 30 de março de 1942, Décio Pedroso já voltava para São Paulo, depois de uma conferência que teve com o presidente do Flamengo, Gustavo de Carvalho, no Rio de Janeiro. No dia seguinte, Roberto Gomes Pedroza, então diretor esportivo do São Paulo, desembarcou cedo de um trem na então capital brasileira portando uma carta de apresentação de Pedroso.
“Illmo. Sr.
Dr. Gustavo de Carvalho
DD. Presidente do C. R. Flamengo – Rio de Janeiro
“Atenciosas saudações:
“Tem o presente apresentar o sr. Roberto Gomes Pedroza, que está credenciado a tratar qualquer assunto que se refira ao São Paulo Futebol Clube, tendo plenos poderes para realizar negociações que necessitem da anuência deste Clube.
“Aproveitando da oportunidade, apresento a V. S., os protestos de meu alto apreço e distinta consideração”.
De acordo com os relatos colhidos por André Ribeiro na biografia do craque, lançada em 1999, o dirigente Tricolor desembarcou com mais do que uma carta. Carregava em mãos, também, uma preciosa maleta, pesada, volumosa.
Além disso, Pedroza estava acompanhado de Porphyrio da Paz e de outro senhor, o famoso cantor Sylvio Caldas.
Pedroza, contudo, não queria ter-se apenas com o presidente flamenguista. Precisava encontrar Leônidas pessoalmente, porém o jogador não estava no clube carioca, com o qual não tinha mais contrato, mas que ainda possuía o registro dele junto à CBD. Ambos estavam brigados desde que o atleta fora posto em liberdade das pendengas militares, devido a uma “guerra” de bastidores via imprensa que levou o “Diamante Negro” a abrir um processo na justiça contra o rubro-negro para obter o próprio passe.
Gustavo de Carvalho chegou a afirmar, certa vez: “Leônidas ou eu”. Por causa dessa situação, e pela transparência de Pedroza na negociação com Gustavo, os cariocas não pensaram duas vezes em fechar acordo com o São Paulo. Caso Leônidas vencesse na justiça, o Flamengo não veria tostão algum. E aquela maleta do dirigente são-paulino era a melhor solução para o caso. Sem falar que, assim, o ídolo não acabaria atuando por um rival local.
Após deixar o Flamengo, a comitiva são-paulina, seguindo o conselho de Sylvio Caldas, encontrou-se com Manezinho Araújo, que também foi destacado ao Rio para ajudar a comitiva: “Este é o único homem que sabe onde o Leônidas se encontra!”, teria dito Sílvio. E Manezinho de fato sabia, mas antes de informar qual seria o paradeiro do “Léo”, Pedroza deixou claras as intenções da visita e lhe mostrou o conteúdo da maleta que carregava.
“Tive o cuidado então de telefonar com antecedência para Leônidas aconselhando-o a pedir alto, pois eu tinha visto, com os meus próprios olhos que a terra um dia há de comer, a massaróca de dinheiro que o São Paulo enviava para a sua conquista”.
A princípio, o jogador não estava disponível. Ele esteve em Niterói, conversando com dirigentes do Canto do Rio FC, mas por volta das 16 ou 18 horas, os tricolores reuniram-se na casa de Leônidas e Dona Maria, mãe do jogador, na Rua Juiz de Fora, no bairro do Grajaú, e lá tudo foi previamente acertado, apesar das lamúrias da genitora do jogador “por ter sabido que o frio de São Paulo aleijava gente”.
Pedroza, importante dizer, também era amigo de longa data de Leônidas. Ambos defenderam juntos a Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1934, na Itália, e em todos os amistosos daquela longa temporada do time da CBD pelo interior do Brasil.
O ex-goleiro Pedroza retornaria no dia seguinte, com o parecer da presidência do Tricolor sobre o combinado e com o objetivo de preparar Leônidas para a entrevista com a Rádio Record. Antes desse encontro, vale lembrar, o diretor esportivo são-paulino confidenciou-se, no Hotel Itajubá, com o colega e jornalista Geraldo Romualdo da Silva, que recebeu em primeira mão o “furo”, pouco depois das 20 horas daquele dia 31 de março.
“Pedroza estava no apartamento com uma maleta cheia de notas de 500 mil réis e um livro de cheques. Ao todo duzentos contos. Oitenta para o Flamengo, 120 para Leônidas, por dois anos de contrato. Guardei o furo para o Jornal dos Sports e para O Globo… Negócio secretíssimo. Se alguém soubesse, estragaria tudo. Haveria uma revolução na Gávea”.
O Globo Esportivo, 10 de abril de 1942
E, de fato, Geraldo guardou segredo e fez parte da trama que se seguiu. Apesar de todos os relatos encontrados na imprensa nos dias seguintes, o fato é tudo foi assinado ou acordado entre todas as três partes, São Paulo, Flamengo e Leônidas, ainda no dia 31 de março. O que se sucedeu foi um jogo de cena, ofertado pela diretoria são-paulina, para que a torcida flamenguista não colocasse o clube rubro-negro abaixo, revoltada contra a negociação.
Os cariocas foram amaciando o público com cifras de imenso valor e vislumbres de bom uso dessas quantias para a formulação de um melhor elenco, por exemplo. Para os periódicos cariocas, de modo geral e em um primeiro momento, o Tricolor era apenas mais um dos interessados pelo “Diamante Negro”, fazendo questão de afirmar, ainda, que nada havia sido concretizado e que, por exemplo, o Palestra Itália ameaçava cobrir qualquer proposta, tendo inclusive enviado emissário, Vitor Gargaglione, para conversar com o craque no dia 2 de abril.
O Tricolor reforçou o teatro. Nesse mesmo dia, Décio Pacheco Pedroso chegou ao Rio de Janeiro para acompanhar de perto as “tratativas” realizadas na Rua Gago Coutinho, no bairro das Laranjeiras, onde residia o sr. Clovis Paulo da Rocha, advogado de Leônidas. Lá, Gustavo de Carvalho assinou papel timbrado são-paulino com a liberação do passe do atleta: “Por este documento concedo o passe livre do jogador profissional LEÔNIDAS DA SILVA ao SÃO PAULO FUTEBOL CLUBE. Rio de Janeiro, 2 de abril de 1942”.
Arquivo Histórico do São Paulo
E, na manhã seguinte, Leônidas “assinou” contrato com o São Paulo – de acordo com toda a mídia esportiva. O clube, por sua vez, reforçou o compromisso de pagamento com o Flamengo pelo passe do atleta. Ficou combinada também a retirada do processo judicial do jogador contra o time carioca.
Vale ressaltar, novamente, que não consta nada assinado pelo atleta nessa data, apenas no dia 31 de março, por isso as aspas na informação anterior. Para atestar o fato, são reproduzidos os termos dos documentos são-paulinos com os envolvidos, Leônidas e Flamengo:
O “contracto de jogador profissional de football” de n.º 7189, com carimbo da Confederação Brasileira de Desportos sobre timbre da Federação Brasileira de Football, definiu vínculo de 21 meses e um dia entre São Paulo Futebol Clube e Leônidas da Silva, começando em 31 de março de 1942 e terminando em 31 de dezembro de 1943, com o compromisso de um ordenado mensal de 800$000 (oitocentos mil réis) ao atleta.
As cláusulas extras adicionadas ao final do contrato estipularam, também:
a) Gratificação de 100$000 (cem mil réis) por vitória e 50$000 (cinquenta mil réis) por empate obtido em cada jogo;
b) Ajuda de custo pela mudança de domicílio no valor de 5:000$000 (cinco contos de réis);
c) Luvas contratuais de 75:000$000 (setenta e cinco contos de réis), sendo 50:000$000 (cinquenta contos de réis) pagos em trinta dias e o restante em parcelas trimestrais.
Mal haviam formulado e assinado o contrato, Décio Pedroso e Leônidas discutiram (provavelmente por telefone) pequenos detalhes e redigiram aditamentos, em papéis diversos, também datados de 31 de março, a saber:
d) Pagar a gratificação devida mesmo em caso de ausência em um jogo por contusão;
e) Compromisso de atuação em amistosos, mesmo fora do período de contrato e sem inscrição na FPF, até 31 de março de 1944;
f) Garantir ao jogador um emprego, aparentemente alheio ao futebol, com ordenado mensal de 1:000$000 (um conto de réis), e caso Leônidas perdesse esse trabalho, por qualquer motivo, o clube continuaria lhe pagando esse valor até o final do contrato.
Contudo, nenhum desses três últimos itens foi adicionado ao contrato registrado junto à CBD, no fim das contas. Na realidade, foram rasgados da folha original, quando protocolados. Restaram apenas as cópias do combinado.
Cabe destacar que, no ato da assinatura de contrato, Leônidas recebeu 30:000$000 (trinta contos de réis) em espécie e o advogado dele, sr. Clóvis Paulo da Rocha, foi pago com 10:000$000 (dez contos de réis) pelos serviços prestados, completando, assim, os 120 contos de réis da parte destinada ao jogador.
Já os termos negociados com o Flamengo ficaram registrados em carta endereçada ao São Paulo no dia 20 de abril. Vale reparar na missiva aqui transcrita a data mencionada e o termo “confirmar”:
“De ordem do sr. Presidente tenho o prazer de acusar recepção de vossa prezada carta de 31 de março último e venho confirmar as seguintes condições estabelecidas entre o vosso Clube e o ‘Club de Regatas do Flamengo’ para a transferência do jogador LEÔNIDAS DA SILVA:
“1.º) – O São Paulo Futebol Clube pagará ao Club de Regatas [do] Flamengo a importância de Rs. 80:000$000 (oitenta contos de réis), nas seguintes condições:
a) – 30:000$000 (trinta contos de réis) no ato do recebimento do passe definitivo;
b) – 25:000$000 (vinte e cinco contos de réis) a 120 (cento e vinte) dias da data do passe em definitivo;
c) – 25:000%000 (vinte e cinco contos de réis) a 240 (duzentos e quarenta) dias da data do passe em definitivo;
“2º.) – O São Paulo Futebol Clube terá opção para realizar 1 (um) ou 2 (dois) jogos, dentro dos duzentos e quarenta dias, concedendo ao Club de Regatas [do] Flamengo, 50% (cincoenta por cento) da renda líquida, garantido a quota mínima de 25:000$000 (vinte e cinco contos de reis) em cada jogo.
a) – No caso da realização dos jogos acima mencionados, o Club de Regatas do Flamengo irá com todas as despesas a seu encargo;
b) – O Club de Regatas do Flamengo far-se-á repreentar pelo seu quadro de profissionais com todos seus titulares.
“3.º) – Durante a vigência do contrato do jogador citado, o São Paulo Futebol Clube não poderá negociar o passe do jogador acima referido sem primeiro consultar o interesse do Club de Regatas do Flamengo no passe do mencionado jogador”.
Nino Borges em A Gazeta Esportiva, 25 de setembro de 1943
Se no Rio de Janeiro, a notícia provocou constrangimentos e buscas por justificativas (Mário Filho, por exemplo, ressentiu-se: “Leônidas passou a valer mais depois de multado, suspenso e condenado”), em São Paulo causou euforia e uma série dos mais variados louvores e elogios. A Folha da Noite estampou na capa do jornal, imediatamente abaixo de manchete referente a Segunda Guerra Mundial: “Leônidas contratado pelo S. Paulo F. C.”, em letras garrafais.
O Correio Paulistano cometeu uma justa redundância para noticiar a contratação: “O assunto principal dos círculos esportivos foi o contrato de Leônidas pelo S. Paulo F. C. cuja surpresa foi das mais surpreendentes”.
O Globo Esportivo, 10 de abril de 1942
O O Esporte, grifou: “O craque mais caro do Brasil contratado pelo São Paulo F. C. Provocou grande sensação na cidade o notável empreendimento do Tricolor”. Já o O Estado de S. Paulo, destacou: “Parece-nos que assim o S. Paulo resolveu de uma vez para sempre o problema dos clubs paulistas: o concurso de um centro-avante”.
Por fim, a Folha da Manhã, que legendou uma fotografia de Leônidas assinando um documento com os dizeres: “O São Paulo contratou o maior centro-atacante brasileiro!”.
Esta história continua…
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