Uma palavra sem tradução guia Bauza, argentino que vê falhas no Brasil

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Guilherme Palenzuela
Do UOL, em São Paulo

A palavra é “jerarquia”. Para o argentino Edgardo Bauza, 58, bicampeão da Copa Libertadores e atualmente técnico do São Paulo, o conceito que o termo carrega explica a lógica do futebol e também o guia a tomar atitudes no futuro próximo dentro do Morumbi.

Bauza acha que este São Paulo tem um limite e que precisa de reforços de “jerarquia” para subir de nível. Não tem dúvidas que o Brasil vai à Copa do Mundo de 2018 porque a “jerarquia” amarelinha superará as deficiências atuais da equipe de Dunga. Aposta que o Leicester, líder isolado e sensação no Campeonato Inglês, não será campeão porque não tem “jerarquia”.

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Não existe, no português, tradução para o termo “jerarquia”. A tradução literal seria hierarquia, mas no futebol sul-americano não é isso que o termo significa. “Jerarquia” é protagonismo, importância, peso, imposição. É o fator decisivo, qualidade que pode estar em um atleta, em uma camisa e em uma equipe. E é o apego por este termo que guia as decisões e explica o futebol praticado por Patón – apelido que Bauza carrega desde criança devido aos pés grandes e pelo qual ele prefere ser chamado.

Na última sexta-feira, Patón recebeu o UOL Esporte no CT da Barra Funda para uma entrevista exclusiva e falou sobre a dificuldade que enfrenta no futebol brasileiro. Fez críticas e pediu mudanças. Apontou quais reforços o São Paulo precisa, disse que não teme ser demitido e explicou que hoje há quatro líderes dentro do elenco. Falou que o futebol que gosta de ver é esse que pratica, “equilibrado”, como ele prefere chamar o que parece tão defensivo. Por fim, respondeu sobre uma polêmica de 26 anos atrás: o que havia na água da seleção argentina da Copa de 1990, da qual ele fez parte como zagueiro?

UOL Esporte: Como está a adaptação à vida no Brasil?
Edgardo Bauza:
Eu sou, como me definiria minha esposa, monotemático (risos). Enquanto eu possa estar em um campo de futebol comandando, num clube que me dê todas as possibilidades de trabalhar, estou bem. Estou adaptado à cidade, estou tranquilo, conheço bastante para poder me locomover com tranquilidade e com os problemas normais de transito que todos vivem em São Paulo. Vivo mais para fora da cidade e levo entre meia hora e 40 minutos para chegar ao CT, mas sim, estou bem, tentando conhecer ainda mais a cidade. Mas com certeza vai levar muito tempo para conhecer. Estou bem e as pessoas estão me tratando muito bem.

O futebol brasileiro é difícil para o estrangeiro? Quais mudanças a adaptação requer?
É difícil, para o argentino e para qualquer estrangeiro. É o único país do mundo onde um time grande como o São Paulo joga 80 partidas no ano. Então a comissão técnica tem que modificar a metodologia de trabalho. Não pode trabalhar como trabalha em qualquer país do mundo, de domingo a domingo, ter cinco dias para poder trabalhar. Em outros países você tem durante o ano muitas semanas para poder trabalhar. Aqui não. É impossível. Tem que se adaptar e é complicado, porque eu acho que todos os times do mundo precisam de horas em um campo de jogo para trabalhar, no tático, no técnico, nas jogadas, na repetição. Aqui você tem que aproveitar o pouco tempo que tem e treinar sem muito esforço, porque no dia seguinte você já tem que jogar. Adaptar-se a isso não é fácil. Já estou adaptado, bem, mas me custou muito modificar a metodologia do meu trabalho e mesmo assim ainda acho que me faltam horas de trabalho no campo para melhorar o time.

Se é impossível aplicar a metodologia geral do futebol no Brasil, quanto isso atrapalha o futebol local?
Há alguns anos atrás, nessas situações, jogadores de grande “jerarquia” resolviam. Mas hoje esses jogadores estão fora do Brasil. Ainda há bons jogadores, mas não há mais aqui os jogadores dessa “jerarquia” que falei. Por isso fica difícil para os times brasileiros quando têm que jogar contra grandes times de outros países. O Brasil já não marca essa diferença que marcava antes. Ficou mais difícil. Acho que em algum momento o futebol brasileiro tem que perceber que há um erro. Isso, para mim, é um erro. Jogar tantos jogos no ano… É preciso encurtar ou nos estaduais ou no nacional para que os treinadores possam trabalhar por mais horas no treinamento. O jogador também precisa ter o descanso suficiente, é muito importante que os dirigentes entendam que o atleta precisa treinar bem, mas descansar também. As 48 horas depois de um jogo de futebol são muito importantes para a recuperação, mas se depois de 72 horas ele tem que jogar, começam os problemas.

Quanto o time do São Paulo está adaptado à sua metodologia?
Eu acho que o time já está adaptado. Mas acho que eu mudaria essa pergunta (risos). Eu que já estou adaptado aos jogadores do São Paulo. Tive que modificar a metodologia para que eles se acostumem e pra que pudessem captar a ideia. Hoje eu vejo o time muito melhor do que nas primeiras três ou quatro semanas de trabalho. A ideia já está dentro do elenco, falta melhorar.

O São Paulo se preocupava em não ter um líder depois da saída de Rogério Ceni. Além de Diego Lugano, quais jogadores têm perfis de líderes aqui?
No elenco, a chegada do Lugano obviamente reforçou o perfil de liderança. Mas o Maicon também assume essa liderança por causa da trajetória e da idade dele. Ele é importante. À sua maneira, Ganso também, e Denis. Eles são dois jogadores que agregam coisas importantes. O bom é que essa liderança não se exerce sempre pelo mesmo e também nem sempre no mesmo ambiente. Um é líder no vestiário, outro na concentração e outro no treino. E é necessário que o técnico tenha a continuidade da própria palavra no elenco, e esses líderes fazem esse trabalho.

Por que Lugano ainda não foi capitão?
Bom… por uma questão de lesão. Lugano está pouco a pouco melhorando fisicamente e não tem a sequência de jogos. O capitão, para mim, é um tema prioritário, precisa ser titular em todos os jogos. O jogador que mais segura essa característica é Denis, por isso dou a capitania a ele. Mas como te disse, Lugano e Maicon exercem um outro tipo de capitania dentro e fora do campo que também é importante.

Como você vê o momento e as críticas a Centurión? Como trabalhar para melhorá-lo?
O momento de Centurión passa por uma questão psicológica mais do que pelo futebol. Do meu lugar, tentei dar a ele a confiança que todo jogador precisa, e estamos tentando manter isso, porque é um jogador ao qual não faltam virtudes. A velocidade dele e a precisão nos últimos 30 metros são qualidades que fizeram com que ele chegasse ao São Paulo. Da parte psicológica, que ele se recupere, esteja bem e que possa ajudar ao time a ser mais eficiente na frente. Eu o vejo numa etapa, digamos, de transição. Ele evoluiu, mas falta a ele ainda subir outro escalão. Estamos tentando ajuda-lo para que ele possa assumir isso e para que se transforme no jogador que esperamos.

Caramelo, João Schmidt, Daniel e Lucas Fernandes não eram jogadores considerados para brigar por vagas no time em 2016. Os quatro, porém, cresceram desde sua chegada. O que você enxergou neles e como trabalhou?
Eu tinha que agregar esses quatro jogadores ao elenco. O meu discurso foi igual para todos os jogadores, não foi diferente para cada um. Para mim a única verdade é quando o atleta trabalha durante a semana em cada treinamento e demonstra para mim a vontade e o desejo de poder entrar. Desde o primeiro dia disse a todo o elenco que irão jogar aqueles que estiverem melhores.  Não importa nome ou trajetória, o mais importante é o time. Esses quatro jogadores trabalharam para estarem onde estão e agora têm de defender essas posições. Dentro desses casos há diferenças, jogadores que são mais experientes e outros nem tanto, mas as regras são iguais para todos.

O que você quer que o time faça que ainda não consegue fazer?
Precisamos terminar o que o time gera. Não temos a eficiência que precisamos ter. O 6 a 0 foi atípico, pois em muito jogos dominamos a partida e não conseguimos definir. Acho que falta ao time definir o domínio que consegue ter no jogo e que por razões de falhas, às vezes, não conseguimos.

O futebol que você pratica é o mesmo futebol que você gosta de assistir?
Sim. Eu gosto dos times que sejam equilibrados. Gosto que no meu time defendam todos e ataquem todos. A questão é que enquanto não tivermos um time bem constituído, como queremos, estamos hoje, a meu critério, ainda em uma etapa de formação. São Paulo, para mim, está em formação. O problema é que o São Paulo é tão grande que se os resultados não vêm os torcedores criticam. Mas quando você está formando um time você tem altos e baixos, e tem inconvenientes como o que tivemos no primeiro jogo da Libertadores, que hoje nos dá muita dor de cabeça. Ter perdido para um time boliviano aqui em São Paulo hoje nos põe em uma situação de muito risco. Mas esse time que jogou contra o Strongest não tem nada a ver com o time que joga hoje, que já é fruto de um trabalho. Estamos trabalhando para que o time continue crescendo e possa se transformar num time como eu gosto: difícil para os adversários e protagonista.

O time montado pela diretoria tem a qualidade que você esperava?
Eu, quando assumi a responsabilidade e analisei o plantel, o que falei era que precisávamos agregar jerarquia ao time. Ao meu critério, agora, precisamos entre três e cinco jogadores, e estamos trabalhando para isso. A diretoria tem o mesmo diagnóstico que eu, mas o que acontece? Até julho temos um caminho muito grande, com muitas exigências e estamos trabalhando para chegar bem a julho e poder trazer três ou cinco jogadores para tentar armar um grande time.

Em janeiro você falava sobre trazer “um jogador por linha”…
Sim, mas não pudemos trazê-los.

E agora? Precisa de um jogador por linha ainda? Ou o problema está específico em um setor do campo?
A ideia é trazer dois jogadores de ataque e depois um por linha. Por isso, entre 3 e 5 jogadores. Infelizmente não pudemos trazer Ortigoza nem Buffarini, que naquele momento se tentou. Não conseguimos. Mas bom, vamos ver. Estamos assistindo o Paulista e os estaduais para ver se encontramos bons jogadores para serem contratados.

O time precisa mudar alguma coisa para vencer o River? E para jogar em La Paz?
O time tem que seguir jogando como faz agora. Vamos trabalhar para melhorar e vamos analisar o rival. Temos dois jogos complicados. O primeiro é com uma equipe de “jerarquia”, que é o River, que tem jogadores da metade do campo para frente que te criam problemas. Mas precisamos de um bom resultado. Depois, vamos a La Paz, com tudo que implica ir a La Paz pela altitude. O último cenário vai depender do resultado entre Strongest e Trujillanos. A realidade é que temos dois jogos complicados, sobretudo pela derrota na primeira rodada

Qual o objetivo do São Paulo no Brasileirão?
Faz três anos e meio que o São Paulo não ganha nada. Isso já responde qual é nosso objetivo.

Você se vê no São Paulo no ano que vem?
Se eu pensasse nisso não estaria trabalhando. Essa profissão é muitas vezes muito ingrata. Mas se eu for refletir que posso ser mandado embora se perder determinado jogo, aí não consigo trabalhar. Eu penso no time, vejo o time evoluindo, mas com um teto. Por isso penso que precisamos contratar jogadores em julho para aumentar esse teto. Nos vejo brigando no campeonato com equipes que hoje levam vantagem sobre nós, como o Corinthians, por exemplo.

Você acompanha a imprensa argentina. E a brasileira? Como vê as críticas?
Mais ou menos, eu vejo, escuto. Na Argentina aconteceu que em determinado momento eu tive uma disputa dialética na qual meu time era estampado como covarde e defensivo. E eu dizia: “Isso é de acordo como vocês pensam”. Se a minha equipe defende com 11 jogadores quando o adversário tem a bola, para mim isso está certo. Quando temos a bola temos que atacar com dez. Agora existe uma onda que diz que os únicos técnicos que servem são aqueles que arriscam e vão para a frente completamente, e para mim o futebol não é isso. Para mim futebol é mais equilíbrio. Atacar com quem é necessário, às vezes com muito, e defender sempre com todos. Aqui também, na análise dos jornalistas se expressa a opinião de cada um de futebol, e então é difícil de satisfazer a todos. Em cada decisão que tomo, então, jamais entra a opinião de um jornalista (risos). Nem boa, nem ruim.

Você fala sobre a crença de que hoje o futebol bem jogado é aquele ofensivo e com posse de bola. Atualmente há uma equipe que faz sucesso, o Leicester, que tem índices muito baixo de posse de bola e muito alto de passes errados…
Mas é o mais eficiente. De todos.

Você gosta do estilo do Leicester?
Não é necessariamente que eu goste. Todos os times de Ranieri foram assim. Então se eu contrato o Ranieri, eu sei o que vai acontecer com o meu time. Cada dirigente tem que saber, quando contrata, o que o técnico oferece. Se eu contrato o Mourinho, sei como vai jogar o time. Vai jogar no contra-ataque, vai ser um time duro. Se eu contrato o Guardiola sei que o time vai ter posse de bola. Na Inglaterra, o Leicester, com esses números, é o time mais eficiente. E isso é o mais importante. Eu acho que o Leicester não vai ser campeão, mas vai se classificar para a Champions League…

O Leicester é líder isolado. Você acha que não será campeão?
Eu acho que não.

Por que?
Porque ao longo de um campeonato tão duro, o time de “jerarquia” acaba ganhando. Para mim, é o mais lógico. A “jerarquia” acaba se impondo. Vamos ver o que vai acontecer, mas já te digo: nessa profissão ninguém tem a verdade absoluta, Bilardo e Menotti foram campeões com estilos muito diferentes, e aqui também temos exemplos. Ninguém tem a verdade. O que te digo é que através de todos os anos como jogador fui dirigido por técnicos muito competentes e minha forma de futebol é encontrar o equilíbrio. Quanto mais “jerarquia” tiver minha equipe, mais fácil serão os resultados, porque para mim o mais importante sempre são os jogadores, não o técnico e o estilo.

A seleção brasileira vive um momento de questionamento ao qual não está acostumada. Como você vê a fase atual?
É uma análise muito difícil. Já não estão os grandes jogadores que marcavam tanta diferença. Há jogadores muito bons, mas não com essa “jerarquia”. A seleção brasileira não ganhou jogos importantes, e isso marca para um time como Brasil. Eu vejo Dunga tentando impor uma ideia muito clara do que ele quer, mas vejo que se os resultados não vierem será muito difícil que ele consiga sustentar tal ideia. Ele tem capacidade, é um treinador que pode escolher os jogadores que quiser. É muito difícil, para qualquer técnico, sustentar a ideia se não houver bons resultados.

Acha que o Brasil vai à Copa do Mundo de 2018?
Não tenho a menor dúvida.

Por que tanta certeza?
Porque a “jerarquia” acaba se impondo. Para mim, o futebol tem muito de lógica. O futebol não é como o tênis. Se Djokovic jogar 20 partidas contra os dez primeiros do ranking, pode perder uma. Brasil pode perder um jogo, mas falta mais da metade dos jogos. Vai terminar classificado, como a Argentina. Por que? Porque a “jerarquia” acaba prevalecendo.

Você representou a seleção argentina na Copa de 1990. O que havia na água?
Eu acho que não tinha nada, porque eu tomei e não me aconteceu nada. Isso tem de ser perguntado aos que disseram que tinha algo. Além disso, como eu sempre digo, a “jerarquia” de um jogador terminou vencendo o jogo. Brasil teve cinco ou seis oportunidades muito claras de gol e Diego teve uma só, e deixou Caniggia mano a mano. Por isso sempre digo que “jerarquia” define as coisas. O Brasil jogou muito melhor. Taticamente Bilardo armou um time para cortar o Brasil, mas num erro posicional defensivo do Brasil Diego fez uma jogada. O futebol tem disso, também.