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Diogo Salles
Armelino Donizetti Quagliato é um dos maiores e mais vitoriosos goleiros da história do São Paulo Futebol Clube e do futebol brasileiro. Com atuações memoráveis e defesas inesquecíveis, Zetti conquistou dois Paulistas, um Brasileiro, uma Supercopa, duas Libertadores e dois Mundiais pelo clube, se tornando um dos símbolos da prodigiosa Era Telê. Debaixo das traves, era um goleiro que aliava liderança, segurança, elasticidade e, acima de tudo, estrela nos momentos decisivos.
Sua figura é tão grande que é capaz de ultrapassar as barreiras que a rivalidade impõe no futebol, conquistando o respeito e admiração também de torcidas rivais. Autoridade na posição, Zetti estreou em 2016 como analista de goleiros pela ESPN. Além disso, é dono da Academia de Goleiros Fechando o Gol, no bairro da Chácara Santo Antonio, em São Paulo. Foi lá que o ídolo recebeu o SPFCharges (e Entrevistas, claro) para falar sobre variados assuntos. Nesta primeira parte da entrevista, ele opina sobre o momento atual do São Paulo, as críticas ao goleiro Denis e as chances do time na Libertadores.
Você é dono de uma Academia de Goleiros e analisa o desempenho dos goleiros na ESPN. Não é injusto chamá-lo de ex-goleiro?
(risos) Eu acho que vou ser eterno goleiro, por tudo que fiz na carreira, no São Paulo, mas acho que o “ex” identifica que você não faz mais aquilo profissionalmente. Ser um goleiro é ser um atleta profissional, ter responsabilidade, ter cobrança e se cobrar por aquilo. A partir do momento que você não tem mais isso, você não é mais um profissional. Às vezes eu brinco com os meus amigos, jogando futebol, às vezes eu jogo na linha, mas não tenho mais a competição. É só uma brincadeira, uma coisa relaxante. A palavra “ex” pode ser forte, mas eu me identifico como um personagem que viveu intensamente aquela profissão, que te deixa toda a sabedoria e o conhecimento para poder ensinar.
Ainda procede aquela ideia de que o goleiro costuma ser uma das posições menos almejadas nas peladas? Como se prepara um aspirante a goleiro?
Eu acho que está mudando esse conceito de que “ninguém quer jogar no gol”, “vai para o gol porque ele não tem qualidade com a bola no pé”, ou até aquela coisa de ser o último a ser escolhido no time. A criança hoje cresce com aquele ídolo e tem condições de treinar, de se aprimorar. É uma posição muito difícil e nem todos têm a oportunidade, mas mesmo o goleiro amador tem condições de melhorar sua performance. Existe uma técnica de pegar a bola, de cair, de fazer os movimentos, mas ela precisa ser aperfeiçoada, com muita repetição. Em quase todo o Brasil já tem escolas voltadas para isso e é bom que outros ex-goleiros estejam atuando nessa atividade.
Os treinos que você comanda aqui são os mesmos que você tinha como profissional?
Exatamente os que eu fazia quando era profissional. Nesses nove anos que estamos trabalhando com goleiros, desde crianças até adultos de mais de 70 anos, não há qualquer discriminação de idade ou cobrança por resultados. Na verdade, quanto pior o goleiro, melhor, porque eu tenho mais a ensinar (risos). Eles estão aqui pelo gosto, pelo prazer, pela paixão de ter visto um ídolo jogar. Muitos pais trazem o filho aqui sonhando que ele consiga ser um bom goleiro na escola, na faculdade ou no clube. As mesmas coisas que comecei a fazer quando eu tinha 12 anos lá em Capivari [interior de SP] eu continuava fazendo aos 36 anos. Era uma repetição constante, do mesmo movimento, mas no final da carreira eu fazia com muito mais qualidade. Sempre digo aqui na Academia que goleiro não pensa, ele faz a defesa por instinto. É um movimento que está tão treinado que se torna automático. O que muda são os obstáculos.
Por que os goleiros andam pegando tantos pênaltis? Como foi essa evolução?
Eu vejo várias situações, que vão acontecer cada vez mais no futuro. Hoje o goleiro tem a tecnologia muito a seu favor, de estudar adversários, de ter a informação rápida. Você consegue fazer um resumo de todos os grandes batedores rapidamente. Nós não tínhamos esses recursos na época. Era muito difícil. Pênalti é treino, 50% para o atacante, 50% para o goleiro. O Valdir Joaquim de Moraes foi importantíssimo para mim, porque existe uma lógica. Todo batedor tem o canto de confiança dele. A tendência de quem bate com a perna direita é bater no canto direito do goleiro. É estatístico. Quem bate com a perna esquerda também tem uma confiança maior em bater no canto esquerdo do goleiro, por causa do pé de apoio, de poder bater forte. Quando ele tenta bater cruzado ele perde a força, é um movimento mais difícil de fazer. Isso foi uma coisa que estudamos na Copa União de 1988, quando muitas partidas iam para a decisão por pênaltis.
* na Copa União de 1988 (o Campeonato Brasileiro da época), todas as partidas que terminavam empatadas eram decididas nos pênaltis. Pelo empate, ambos os times recebiam um ponto, e o vencedor da disputa de pênaltis recebia um ponto de bonificação.
Denis tem sido muito questionado em sua atuação no gol do São Paulo. Até que ponto essas críticas são justas e até que ponto há o peso em substituir o Rogério Ceni?
As críticas são justas quando você tem falhas. Goleiro tem que dar segurança para sua defesa, para seu técnico, para o torcedor e também para a imprensa. A defesa tem que se sentir bem quando a bola está chegando na área, e o goleiro precisa se impor naquele momento. Acho que o Denis tem toda a característica para isso. Tenho visto os jogos e vejo o Denis fazer grandes defesas, ele é rápido e tem velocidade, explosão para fazer os movimentos. Talvez a saída de gol venha comprometendo o trabalho dele.
A saída do gol, no caso do Denis, é um problema técnico ou de falta de confiança?
Acredito que os dois, porque o defeito técnico você tira com treinamento, repetição. Dessa forma, você readquire a confiança. Goleiro não pode ter medo de errar. Se você tiver alguma dúvida, você não chega na bola e acaba comprometendo. Esse defeito que deixou a torcida em dúvida e está sendo criticado precisa ser melhorado. O Denis não tem nenhum vício daqueles incuráveis que vêm da categoria de base. O peso de substituir o Rogério Ceni é forte, porque é um clube que disputa títulos. Além de encarar o adversário, ele ainda tem essa dificuldade de carregar o nome de um ídolo. O Rogério também teve isso quando eu saí do São Paulo.
Mas parece que ele está carregando os dois pesos. O do Rogério e o seu…
(risos) Não, o meu não! Senão tem que pegar o Waldir Peres, o Gilmar. É peso demais!
Há quem diga que o São Paulo não preparou um sucessor para o Rogério. Outros defendem que o clube deveria correr atrás de outro goleiro. Qual a sua opinião?
Acho que as duas situações estão corretas. O Rogério tem 25 anos de clube e, em todo esse tempo, não teve um substituto revelado na categoria de base. Passaram alguns goleiros que tinham essa qualidade, mas faltou a base se preparar sabendo que um dia ele ia parar de jogar. O São Paulo não se preocupou com isso, não investiu na base, pegando o menino de 15 anos a trabalhando com ele até os 22 anos. Não falo atualmente, mas, dentro desse contexto do Rogério Ceni, a base do São Paulo foi uma das piores do futebol brasileiro nesse quesito de revelar goleiros. Houve uma acomodação. Ali precisava ter um goleiro de 30 anos revelado pelo São Paulo para a reserva do Rogério, um de 25, esperando a oportunidade como terceiro goleiro e um de 18 jogando pela sua categoria na seleção brasileira. Veja o Denis e o Renan. Vieram de fora, não foram formados no São Paulo. Espero que os torcedores e a diretoria não fiquem bravos comigo, mas onde estão os goleiros revelados pelo clube nesses últimos 25 anos?
A experiência sempre conta muito para o goleiro, mas seu auge ocorreu entre os 25 e 30 anos. O auge do Rogério Ceni, por exemplo, foi entre os 30 e 35 anos. Por que isso varia tanto entre os goleiros?
Não há uma regra. Depende da condição física, mas depende também da equipe. Quem é o ídolo no clube? É o cara que foi campeão. Não importa a idade e nem se ele jogou um ano ou dez anos no clube. Importa se ele fez algo que agradou a torcida, que deu alegria a ela. Isso serve de exemplo para o próprio Denis. Para ele ser ídolo, ele vai ter que conquistar alguma coisa, para marcar uma história positiva. Se eu, o Rogério, o Waldir Peres não tivéssemos ganhado nada, não estariam falando de nós até hoje. Com 21 anos eu vivi um grande momento no Palmeiras, ficando 13 jogos sem tomar gol, mas não ganhei título. Então isso depende menos da idade que o jogador tem e mais do que conquistou. O Toninho Cerezo foi bicampeão do mundo com 38 anos, e é o maior ídolo do São Paulo nessa posição.
Em 2015, o SPFC era considerado um time sem alma. Hoje, mostra espírito de luta e está entre os quatro melhores da América. O que aconteceu?
Acho que o São Paulo vem numa situação de mudança. O Luis Fabiano ia sair, o Rogério ia parar, o Pato tinha encaixado bem no ataque, o Kaká, que chegou e saiu. Acho que ficou um pouco essa sombra do Kaká, de achar um substituto. Alguns zagueiros que saíram e o clube não conseguiu repor, como o Miranda. O São Paulo começou a procurar outros jogadores para montar aquele time novamente e essa transição é sempre difícil. É difícil principalmente para os torcedores entenderem. Fora isso, faz dois anos que o clube vive uma turbulência política. Podem até dizer que não interfere dentro de campo, mas interfere, sim. Tudo está envolvido. Salário, concentração, vivência, notícias que saem na imprensa e que às vezes não são verdadeiras, mas que acaba envolvendo o jogador. É todo um conjunto de coisas que fazem com que os jogadores não estejam com o mesmo pensamento. Ainda vai demorar mais um pouco para ajustar essas turbulências.
Então você acha que o período de turbulência ainda não acabou?
Acho que ainda não. Ainda não consolidou. Mesmo o São Paulo passando de fase na Libertadores, a gente ainda não vê um time sólido, consolidado, jogando bem no Paulista, no Brasileiro e na Libertadores. Lógico que a gente acredita, por gostar do São Paulo, por ser são-paulino no lado de vencer, mas sempre tem aquela desconfiança.
Só para ficar registrado: você é são-paulino de berço?
Sou. Sempre fui. Meu pai era são-paulino, meu irmão que é palmeirense (risos).
Como era jogar por um rival?
Eu gostava, tanto quanto na época que joguei no Santos. Você é um profissional, convive com aquilo e não tem como não se envolver e gostar daquilo que você está vivendo.
Como você vê a atuação do Pintado no clube hoje? Qual seria o papel dele nessa recuperação e que tipo de liderança ele exercia no time de 1992?
O Pintado era um capitão que nunca usou a faixa. E não precisou usar. Ele foi um atleta fantástico para o grupo, para a equipe, dentro e fora de campo. O Telê adorava o jeito dele e nós também. O Raí era movido dentro de campo pelos gritos do Pintado. Você precisa de um cara no meio de campo com essa energia positiva. Essa liderança do Pintado serve hoje para o clube porque, além de ser auxiliar direto do treinador, ele está como um consultor. Com o conhecimento que ele tem, ele conseguiu agregar a equipe novamente, melhorar a autoestima, como no caso do Ganso. Pintado é um vencedor, foi uma ótima contratação do São Paulo.
Nessa Libertadores, o São Paulo parece estar seguido à risca a receita do time bicampeão em 92/93: fazer o placar em casa e segurar o resultado fora. Quais as chances de conquistarmos o tetra?
O São Paulo tem essa alma da Libertadores, e o torcedor entendeu isso. Não sei se é mais importante do que os outros campeonatos, mas é diferente e isso o jogador tem que levar para dentro de campo. Uma coisa que eu falo muito é que na Libertadores você não pode jogar bonito, você tem que jogar pelo regulamento. Às vezes você sabe que a bola vai fora, mas dá o carrinho mesmo assim, bate na placa e tudo. Isso faz diferença. Esse é o espírito da Libertadores, de contagiar os companheiros, não se entregar nunca. Não pode andar em campo, tem que correr o tempo todo. E precisa dar confiança aos reservas, porque eles têm que estar bem quando precisar.
Contra o Atlético Mineiro eu gostei muito mais desse último jogo em Minas do que o do Morumbi, porque o time soube segurar o resultado, não perdeu nenhum jogador na partida. Não perdeu a cabeça, porque isso faz uma diferença monstruosa. Quando tem um jogador expulso é muito difícil se recuperar na partida. O Atlético Nacional é um time muito chato de se jogar, é um time que corre muito. Acho que esses altos e baixos entre Paulista, Brasileiro e Libertadores deixam uma desconfiança. Está faltando esse equilíbrio entre as competições.
* Na próxima terça-feira, na segunda parte da entrevista, Zetti fala sobre sua carreira e suas conquistas no São Paulo