Zetti: ‘Queria ter encerrado a carreira no São Paulo’

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ESPNFC.com

Diogo Salles

Diogo Salles
Zetti e a defesa que mudou a sua (e a nossa) história

 

Na segunda parte da entrevista concedida ao SPFCharges (e Entrevistas), Zetti fala sobre sua carreira, os títulos que conquistou pelo São Paulo e a transição que o clube fez entre ele e Rogério Ceni.

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Você chegou ao São Paulo em 1990 para disputar posição com o Gilmar e acabou se tornando titular. Como foi esse início?

Foi uma oportunidade que surgiu. Eu estava há um ano e meio parado, sem contrato. Tinha comprado meu passe e fui para Genebra, treinar no Servette da Suíça. Depois fui para o Atlético Madrilenho, que é o segundo time do Atlético de Madri, e rodei quatro meses tentando ser negociado na Europa. Na época não tinha vídeo, DVD, nada disso. Só uma pasta, com as defesas, invencibilidades. Mas eu tinha quebrado a perna no Palmeiras* e não estava jogando no Brasil, então algo errado tinha, na visão deles.

Quando voltei ao Brasil, estava desanimado, não sabia o que ia fazer e aos 25 anos de idade pensava em desistir do futebol. Foi aí que o Valdir Joaquim de Moraes, que estava trabalhando com o Rubens Minelli no Pinheiros [atual Paraná Clube], me ligou e disse “o São Paulo está procurando um goleiro e eu te indiquei. Passei seu telefone, eles vão ligar”. Tinha acontecido aquele problema com o Rojas em 1989 [o caso do rojão no Maracanã] e eles precisavam de um substituto. Passei uma semana numa angústia enorme, esperando aquela ligação. Não havia essa mídia toda que tem hoje, tudo imediato. Imagine o desespero!

 

Quando eu estava fazendo o exame médico, contrataram o Pablo Forlán como técnico. Fiquei três meses na reserva do Gilmar, treinado forte, em três períodos, perdendo peso e recuperando a forma. Eu tinha que provar que podia. O Gilmar era um goleiro de seleção, tivemos até uma desavença na época, mas aprendi muito com ele. Eu o via treinando e queria treinar mais do que ele. No fim, acabamos nos resolvendo e ficamos amigos. Fomos campeões juntos na Copa de 1994. O Gilberto [ex-goleiro do SPFC nos anos 1960] era o treinador de goleiros na época e me deixou numa forma fantástica. Entrei no Campeonato Brasileiro para disputar a posição. Depois de algumas rodadas sem vitórias, o Forlán resolveu me testar num jogo do Torneio da Amizade no México. Acho que não tem registro desses jogos no Youtube. Eram dois jogos. O Gilmar jogou o primeiro e eu joguei o segundo. Nesse jogo, estávamos perdendo de 1 a 0, gol contra do César, que é muito amigo meu, foi meu auxiliar. No tempo normal eu peguei dois pênaltis do mesmo cara. No final, empatamos – com gol do César – e levamos a decisão para os pênaltis. Então peguei outro pênalti do mesmo cara, mas o juiz mandou voltar. Ele bateu de novo, eu peguei de novo. Depois peguei mais um de outro jogador. Cinco pênaltis no mesmo jogo! Uma coisa maluca! Ai o Forlán falou “opa!” (risos). Pouco depois, virei titular e fiquei cinco jogos sem tomar gol. Aí chegou o Telê. Quando eu vi, estava no Morumbi fazendo a final com o Corinthians.

 

* Na Copa União de 1988, no jogo entre Palmeiras e Flamengo no Maracanã, Zetti quebrou a perna numa dividida com Bebeto. O Palmeiras já tinha feito todas as substituições, o centroavante Gaúcho foi para o gol e fez duas defesas na decisão por pênaltis.

 

Nesses dez anos da morte do Mestre Telê Santana, saíram muitas matérias sobre as cobranças que ele fazia aos jogadores, como Raí, Macedo e o próprio Pintado. De você ele parecia não cobrar tanto. Como era sua relação com ele?

Ele cobrava de mim de uma forma diferente. Eu recebia muita bronca do Valdir de Moraes…

 

É aí que entra o Valdir de Moraes, como intermediador?

Sim. O Valdir era o braço direito do Telê Santana. O Telê ouvia poucas pessoas assim, no sentido de interferir no trabalho dele. O próprio Muricy o acompanhou por muito tempo e conseguia dar opiniões, mas tinha que ir com jeitinho. O Valdir era um cara que dava opinião e o Telê escutava porque o que ele passava era muito sério. Na Libertadores de 1992 ele viajou a América do Sul inteira, anotando sobre todos os adversários que podiam chegar contra o São Paulo, e acabou dando certo naquela final.

 

Só para confirmar: essa Libertadores de 1992 foi o título mais especial para você?

Sem dúvida. Mais especial, mais comemorado. Inesquecível…

 

Quando você defendeu o pênalti do Gamboa, levantou os braços e fechou os olhos, parecia em transe. O que passou pela sua cabeça naquele momento? Você tinha alguma noção de que tinha mudado a história do São Paulo?

Não, fui entender isso depois de 20 anos (risos). É uma emoção, é tudo naquele momento. Passa um filme na cabeça, da família, do que estou fazendo ali. Eram 120 mil pessoas gritando o meu nome. E ao mesmo tempo que eu escutava esse coro, essa coisa louca que te deixa surdo. Mas eu não podia ouvir porque precisava da frieza no momento da cobrança do pênalti, porque era uma coisa ensaiada. Eu já tinha definido o canto. O Alexandre [goleiro reserva] estava lá do meio de campo me passando onde eu tinha que ir. Então quando o Gamboa corre para a bola, eu precisava pensar como se não tivesse ninguém no estádio. Nunca fui de comemorar pênalti, só comemoro quando sei que o jogo acabou e vencemos, e ali foi diferente. Agradeci família, torcida. O Müller foi um dos primeiros que saiu ali de trás do gol, porque ele tinha sido substituído pelo Macedo. Logo depois eu não vi mais nada porque era tanta gente dentro do campo.

 

O que aconteceu com você ali no meio daquela invasão? Era um mar de gente…

Teve um torcedor que me levantou, me colocou em seu ombro e começou a andar. No meio daquela confusão arrancaram minha camisa, chuteira, meia, puxavam de todos os lados. E o cara me levava para todo lado, eu não conseguia descer para receber o troféu e a medalha. De longe eu via os jogadores recebendo as medalhas. Eu não tinha mais o controle da situação. Aí a polícia chegou e fui para o túnel de acesso. Só fui receber a minha medalha no vestiário. Mas a invasão foi uma coisa linda, fantástica. Tenho o filme disso na cabeça, aquela multidão chegando, preenchendo o gramado todo.

 

Outro jogo memorável foi na final de 1993, contra a Universidad Católica no Morumbi. Primeiro naquele recuo errado do Gilmar e depois naquela sequência incrível de defesas. Aquele foi o seu melhor momento, tecnicamente falando?

Acho que na parte técnica eu vivia um momento muito bacana desde 1991, e durou até mais ou menos a Copa de 1994. Acho que em 93 foi uma grande fase porque já vinha de um reflexo, com vários títulos conquistados. Eu estava em um ritmo muito forte, entrosado com a defesa. Tinha o Ronaldão, tinha o Gilmar, o Válber, que chegou depois, o Adilson, que para mim foi um dos maiores zagueiros com quem tive a oportunidade de jogar. E com o passar do tempo você vai juntando toda essa experiência, esse companheirismo e eles vão tendo uma confiança tão grande no que você faz que a performance vem de forma natural. Acho que foi a consolidação, o ponto máximo, não tinha mais para onde ir. Faltou só ser o titular da Copa (risos).

 

Faltou pouco. Aliás, para muitos, era você quem deveria estar ali.

Acho que naquela Copa poderia ser tanto eu, quanto Taffarel e Gilmar, ou o Ronaldo [Giovanelli, ex-Corinthians] e o Velloso, que não foram. Sem dúvida teríamos sucesso, porque o time era muito bom.

 

No final de 1996 você encerrava seu ciclo no São Paulo, abrindo caminho para Rogério Ceni se tornar o titular. Em entrevista recente, você disse que preferia ter ficado e encerrado a carreira no clube, mas recebeu o passe livre e acabou saindo. Como foram as negociações nessa transição?

Quando fui para o Santos, eu estava completando 32 anos. Eu tinha negociado o passe com o São Paulo um anos antes, porque naquela época não era um direito federativo. E eu tinha negociado um salário mais baixo, porque o patrocinador máster da época [TAM] acabou saindo e eu era garoto-propaganda deles. Então o São Paulo propôs pagar a mesma coisa que vinha pagando, sem o direito de imagem, e eles me davam o passe no final do ano. O Rogério, apesar de jovem, vinha demonstrando muita qualidade, então na cabeça dos dirigentes eles pensaram em ficar comigo mais um ano, depois entra o Rogério e segue a vida.

 

E no final de 1996, se tivesse uma nova proposta, você teria renovado pelo mesmo salário?

Sim, claro. Mas um mês antes de encerrar o contrato, os dirigentes tinham demonstrado que não havia interesse na renovação. Quando fiz o último jogo da temporada, eles anunciaram que eu não ficaria. Depois voltei em 2001, quando parei de jogar. Eu já tinha saído do Sport e não queria encerrar a carreira. O Rogério estava afastado do elenco*, treinando em Cotia durante alguns meses, e um diretor do São Paulo me chamou para conversar, mas disse que não daria detalhes por telefone.

Eu estava em Piracicaba e fiquei um dia pensando o que ele queria comigo. Imaginei que fosse para ficar uns seis meses até resolver o problema do Rogério e aí encerrar minha carreira. Para mim, seria o máximo encerrar a carreira no São Paulo. No fim, a conversa não era nada do que eu tinha sonhado na noite anterior. O convite era para ser treinador da categoria de base. Então ficou essa pontinha de mágoa. Hoje é até engraçado lembrar disso, mas imagine a ducha que eu recebi! (risos). Mas desde que eu tinha saído do Santos, eu vinha patinando. Fui para a União Barbarense, depois para o Sport, e eu não queria ficar rodando, queria ser competitivo. E aquele discurso olhando no olho dos companheiros, de chegar na final, não estava mais saindo. Foi uma decisão muito difícil. Parei com 36 anos. Achava que poderia ir até os 38, mas tinha um lado em que já estava me cobrando. Eu tomava um gol e dizia “putz, mas eu não tomava esse tipo de gol”. Aí comecei a me questionar, porque eu dizia que bola estava ruim, a luva não segurava, a chuteira doía o pé, o gramado era ruim e na verdade não era nada disso. Eu já vinha fazendo curso para me tornar treinador, estava me preparando, mas você nunca acha que vai chegar esse momento. Futebol é momento, é oportunidade. Você precisa estar preparado para tomar a decisão certa. Então me tornei treinador da base do São Paulo e fiquei lá durante um ano e meio.

 

* Em 2001, Rogério Ceni entrou em conflito com o então presidente Paulo Amaral. Rogério alegava ter uma proposta do Arsenal, o presidente rebatia dizendo que não havia proposta e que o goleiro estava apenas forçando um aumento de salário.

 

Você foi uma espécie de tutor do Rogério no inicio da carreira dele. Você dava dicas, o ensinava de alguma forma? Como era a convivência entre vocês?

Era muito boa. Com certeza, dei muitas dicas nos treinos, nos jogos, após os jogos, mas não é algo que você chega e fala “olha, tem que fazer assim, porque lá na frente vai acontecer isso”. As dicas acontecem no dia a dia. O Rogério sempre foi muito observador, como eu também fui quando fui reserva do Leão no Palmeiras. Eu dizia para ele pegar tudo o que achava que fosse bom, absorver e tentar fazer até melhor. Então você acaba ensinando e também aprendendo.

 

Como foi aquela história do jogo no Paulista de 96 em que o Muricy foi expulso, o Rogério virou técnico do time e mandou você ir até a área adversária cabecear?

Acho que essa foi a maior loucura que eu fiz na minha vida de atleta. Eu nunca poderia ter dado ouvidos a ele naquele dia (risos). O jogo estava 0 a 0 e precisávamos da vitória para garantir o vice-campeonato. O Muricy foi expulso e o campo do Mogi Mirim não tinha arquibancada onde ficava o banco de reservas. Ficamos sem comunicação. Aí o Rogério virou técnico. Tirou volante, colocou atacante… Aos 44, no sufoco, o Denílson foi bater o escanteio e eu fui para a área adversária, para tentar entrar em diagonal, mas o Serginho [lateral] entrou na minha frente e mandou longe, por cima do gol. Quando olhei, o gandula já tinha colocado a bola na marca do tiro de meta. O goleiro quebrou a bola lá na frente, e eu ainda estava na meia-lua adversária. Dei um pique de 100 metros e quando cheguei no gol, começou a escurecer a minha vista, comecei a passar mal, pressão baixa, muita adrenalina. Sorte que na sequência roubamos a bola e o Denílson fez o gol da vitória.

 

A reverência e o carinho com que o Rogério te tratou no jogo de despedida dele foi admirável. Qual foi a sensação de voltar ao Morumbi, ter seu nome gritado pela torcida e rever os amigos depois de tanto tempo?

Cara, isso me emociona. Foi uma sensação maravilhosa. Houve o encontro, aí você entra no ônibus, todo mundo junto, você começa a conversar com os companheiros no almoço. Ali é o tempo que você tem para conversar com amigos que não tinha mais contato. Sempre existe o carinho que você guarda e depois de alguns anos você quer saber como a pessoa está, como está a família, os filhos. No jogo é muito rápido. Por mais festa que seja, você não conversa. Só dá risada do outro pisando na bola e caindo, do outro que está meio gordinho, o outro que não consegue correr mais, ou eu tomando gol (risos). Mas o que o Rogério proporcionou foi um presente para todo mundo. Ele encerrou a carreira reverenciando as duas gerações de campeões do mundo.