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Diogo Salles
Há exatamente um ano, no dia 9 de dezembro de 2015, a comunidade são-paulina recebia a notícia da morte de Juvenal Juvêncio. A repercussão, como era de se esperar, foi imensa. Admiradores choraram, cornetas silenciaram, rivais prestaram respeito. Difícil conter as emoções ao falar sobre uma figura tão presente e controvertida na história do clube.
Meses atrás, desenhei a saga Star Wars no contexto da carreira de Rogério Ceni, mas, se fosse para adaptar a ideia à história do São Paulo, Telê Santana continuaria sendo o Mestre Yoda, e o papel de Imperador Palpatine ficaria com Juvenal Juvêncio. Ao receber a notícia de sua morte – e sabendo que em momentos de fúria é aconselhável ficar longe das redes sociais –, deixei meu lado sombrio exalar pelo Twitter. Agora chegou o momento de deixar as opiniões pessoais de lado e fazer um balanço.
Começo por essa estranha lenda que se estabeleceu entre a nossa torcida na última década: a de que Juvenal Juvêncio era “folclórico”. É certo que suas aparições caricatas na mídia, seu jeito pastoso de falar e suas frases de efeito rendiam muitas manchetes, piadas e memes. Só esqueceram de perguntar quem ganhava com isso. A imprensa engraçadona? Os fakes das redes sociais? Os rivais? O São Paulo seguramente não era.
Mas nosso cartola não vivia só de histrionismos. Não. Três mandatos consecutivos lhe conferiram tempo suficiente para encarnar diversas personas. O hábil negociador, que recusou 80 milhões de reais pelo passe de Lucas, para depois vendê-lo por 117 milhões. O megalomaníaco, que produziu a nababesca festa para receber Luis Fabiano de volta. O populista, que não perdia uma chance de alfinetar rivais e ganhar moral com a torcida. O caudilho, que deu musculatura inédita às torcidas organizadas e fez delas a sua tropa de mercenários. O ébrio, que ostentava sua coleção de mamadeiras escocesas e precisava ser amparado sempre que se levantava.
Quem conhecia a política do clube sabia de sua personalidade autocrática e vingativa, mas para o torcedor modinha alienado, era só um velhinho presepeiro. Fato é que, enquanto a claque ria das desventuras do presidente “folclórico”, os rivais passaram a nos olhar pelo retrovisor no quesito gestão de futebol. Quando nos demos conta do desastre, tínhamos técnicos do nível de Carpegiani, Adilson Baptista e Ney Franco escalando jogadores como Wellington, Douglas e Paulo Miranda (sem falar que já é a segunda de quatro temporadas que flertamos com a segunda divisão). Ainda há quem acredite em coincidência.
A história de Juvenal no São Paulo pode ser contada através de décadas. Deputado estadual nos anos 1960, ganhou protagonismo no clube vinte anos depois, quando foi diretor de futebol nos dois mandatos de Carlos Miguel Aidar, entre 1984 e 1988. Após desmontar o timaço Bicampeão Paulista 1985 e 87 e Campeão Brasileiro de 1986, sucedeu Aidar na presidência. Conquistou mais um Paulista em 1989 e o vice Brasileiro daquele ano, mas em 1990, às vésperas de deixar o clube na “chave caipira” do Campeonato Paulista, fracassou ao tentar a reeleição.
(Abro um parênteses para fazer uma correção histórica: muitos acreditam que JJ teria fundado as bases para a vitoriosa Era Telê, mas seu mandato se encerrou em abril de 1990. Figuras-chave para a montagem do time que seria Bicampeão Mundial, como Zetti, Muller, Leonardo, Valdir de Moraes, Moraci Sant’anna e o próprio Telê, só chegariam nos meses seguintes, já sob o mandato de José Eduardo Mesquita Pimenta. Sigamos.)
Mais de uma década depois, Juvenal voltaria a exercer um cargo de destaque, ao se tornar o homem forte na gestão de Marcelo Portugal Gouveia. Foi inegável seu mérito na montagem do time Campeão Mundial de 2005 e mais ainda na conquista do Tri Brasileiro 2006-08, já como presidente. Até aquele momento ele teria gravado seu nome na galeria dos maiores dirigentes da história do São Paulo. Teria. Inebriado pelo poder absoluto, resolveu rasgar sua biografia e passou a agir como se o SPFC fosse seu quintal particular. É em seu segundo mandato que acontece o ponto de inflexão, ainda nebuloso na cabeça de estudiosos da história do clube.
Para alguns, ele se perdeu quando violou o estatuto do clube, ao estender seu mandato em um ano e abrir a brecha que permitiu o terceiro mandato. Para outros, o fator determinante teria sido a exclusão do Morumbi como sede da Copa do Mundo de 2014. Certamente essa foi a maior derrota política de sua carreira. Imaginem o recalque do velho coronel ao ver o presidente da CBF trazendo investidores, patrocinadores e costurando acordos com o presidente do rival – aquele do “Mobral inconcluso”, segundos palavras do próprio Juvenal.
Onde quer que esteja o ponto de inflexão, foi durante este período que perdemos algo muito mais valioso do que um estatuto ou uma sede de Copa. Perdemos nossa identidade. Aquela alma obstinada e vencedora, que sempre foi a nossa marca, deu lugar a uma mentalidade tacanha, provinciana. De repente o São Paulo deixou de ser aquele clube de vanguarda, que traça as linhas futuras de nosso futebol, para se tornar aquele vizinho invejoso e mesquinho, que perde a maior parte do seu tempo em futricas paroquiais.
Antes, quando éramos derrotados, fazíamos uma autocrítica e repensávamos nossos erros para poder reencontrar a rota da vitória (por isso ela sempre vinha). Sob o fel de Juvenal, a nova ordem era apontar dedos e culpar os outros pelos nossos próprios fracassos. Sempre que rivais vinham esfregar títulos em nossa cara, nos restava voltar na história e lembrar, com altivez “soberana”, do que havíamos sido no passado.
Outro equívoco comum entre são-paulinos é achar que o rompimento entre JJ e Carlos Miguel Aidar os tornou figuras antagônicas dentro do clube. Não apenas foi Aidar o advogado que engendrou a manobra jurídica que permitiu o terceiro mandato, como se elegeu sucessor e manteve todos os privilégios do grupo de poder. Que fique claro: Juvenal e Aidar são as duas cabeças do mesmo monstro que quase nos destruiu.
A grande diferença entre os dois é o peso político. Foi relativamente fácil destituir Aidar do poder e conter os danos de sua gestão. Já os estragos causados por Juvenal foram sólidos, estão entranhados e serão duradouros, pois transcendem questões administrativas e não necessitam de sua manutenção no poder para existirem.
Entre muitas opiniões divergentes, talvez o único consenso entre defensores e detratores do cartola esteja no fato de que seu terceiro mandato foi um erro de proporções cataclísmicas. Qualquer torcedor mais ou menos informado sobre o clube sabe que a estrada que nos levou à catástrofe política de 2015 começou a ser trilhada pelo menos seis anos antes. A famosa declaração de Rogério Ceni, ainda em 2013, de que o SPFC havia “parado no tempo” era um diagnóstico, mas também soava como premonição.
Seja qual for a sua opinião sobre Juvenal Juvêncio, é importante saber situá-lo corretamente em nossa história. Olhando em retrospecto, tenho clara a visão de que havia dois grupos de pessoas que se divertiam com os circos que ele armava em conluio com os sanguessugas da imprensa e os parasitas das redes sociais. O primeiro grupo era o dos rivais, que viam ali uma oportunidade para nos empurrar ladeira abaixo. E o segundo era formado por uma grande massa de manobra tricolor, que se deixava levar pelos descaminhos de JJ.
Discernimento nunca foi o forte do ex-mandatário, muito menos de seus seguidores. Irônico pensar que esses inocentes úteis contribuíram de forma tão decisiva para a decadência do clube – algo que os nossos rivais mais rancorosos jamais conseguiriam com as próprias forças.
Juvenal Juvêncio nos dividiu como torcida, destruiu alicerces que ele próprio ajudou a criar e nos deixou debaixo de escombros que levaremos anos (talvez décadas) para remover. Apesar de todos os percalços vividos nesses 365 dias, o ar no Morumbi é um pouco mais respirável hoje, sem a eminência parda do velho latifundiário.
Se por um lado a aprovação do novo estatuto e a reformulação da comissão técnica e do elenco apontam novos tempos, por outro, o hediondo busto inaugurado este ano no CT de Cotia mostra como o clube ainda é prisioneiro de seus vícios e incapaz exorcizar o maior de todos os seus demônios.
Seja qual for o caminho do SPFC daqui em diante, que essa efeméride nos sirva para uma profunda reflexão.