Venda de Neres é mais uma prova de que só Cotia nos salvará

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Por Pedro De Luna – Blog do Torcedor
Segunda-feira, 24 de outubro de 2016. O maldito rodízio de carros me prendeu até as 20h em Pinheiros e tudo em que eu conseguia pensar era no jogo contra o Fluminense, fora de casa, pela 31ª rodada, crucial para a nossa luta contra o fantasma da B. Com ¾ do Brasileirão já transcorridos, o São Paulo estava a apenas um mísero ponto da zona de rebaixamento e não vencia fora de seus domínios havia 71 dias. A fase era ridícula e, francamente, o time exalava apatia e parecia sem rumo. Uma derrota naquela noite insossa de segunda poderia representar a nova rotina de ver o São Paulo jogando às terças e sábados no ano seguinte. Nosso adversário, por outro lado, tentava morosamente adentrar o G4 (ou G5, ou G6, quem se importa?). No íntimo, eu nutria certo otimismo: bastava jogarmos de maneira minimamente organizada que esta era uma partida perfeitamente ganhável, em um estádio com ambiente ameno e frente a um rival repleto de defeitos como os nossos, que vinha de duas derrotas. O divisor de águas tinha de ser ali, naquela noite.

 

A cada marcha que eu passava nervosamente no trânsito da Avenida Brasil, me punha a desejar o poder do teletransporte. Sem rádio no carro, o jeito era acompanhar os comentários do grupo de amigos tricolores no WhatsApp. Foi assim que soube que Cueva perdeu gol feito e que Wellington (o deles) fez um carnaval na nossa zaga, originando o 1×0 para o Fluminense. Finalmente cheguei em casa, liguei a TV e a impressão foi a pior possível: o São Paulo de Ricardo Gomes exalava um ar morno, que confundia inexplicável tranquilidade com a incapacidade de ganhar todo e qualquer duelo individual. Cueva, já então o dono do time, fazia sua pior partida pelo Tricolor. Estávamos perdidinhos e nada indicava que a situação se inverteria.

 

Depois do intervalo o suplício continuou, com Denis fazendo defesas complicadas, bola na nossa trave e nada de ameaçarmos o gol do Fluminense. Até que aos 15 minutos, Ricardo Gomes toma aquela que se revelaria a melhor decisão de todas suas duas passagens pelo Tricolor e chama o menino David Neres para estrear pelo time principal. No flamejante grupo de WhatsApp, um compreensível temor se instaurou: “Vai lançar o moleque justo agora?!”. O camisa 14 entra no lugar de Robson e passa Kelvin para a esquerda, se fixando na ponta-direita que seria sua morada dali até o final da temporada. Logo na primeira bola, literalmente com menos de um minuto como jogador profissional, Neres entorta um marcador, vai à linha de fundo e dá um cruzamento perfeito para Cueva. O São Paulo, como num passe de mágica, começa a mandar no jogo, com Neres como protagonista, jogando feito veterano. Dribles, desarmes, cruzamentos, passes, piques… O confiante fedelho de 19 anos tomou conta da partida, atrevido como só os que sabem ser diferentes são, e injetou uma visível e providencial dose de auto-estima aos outros 10 jogadores do time, que saíram da letargia e reagiram. Assim, com gols de Thiago Mendes e Rodrigo Caio, saímos do sufoco, viramos para 2×1, ultrapassamos quatro equipes de uma só vez na tabela e chegamos à 12ª colocação. Aquela vitória, na prática, selou nossa escapada do rebaixamento.

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Fluminense x São Paulo David Neres

 

O tal grupo de WhatsApp jamais viveu dia tão agitado quanto aquele. Quatro membros, inclusive, ignoraram o fato de aquela ser apenas mais uma segunda-feira na vida do proletariado brasileiro e foram a um boteco celebrar seu alívio – não sem antes convidarem os demais, que por motivos geográficos ou conjugais, declinaram a tentadora convocação. E foram a um desses bares de verdade, em que o cotovelo do cidadão gruda na mesa e o limo se acumula por entre os azulejos da parede, e não a recintos restritos a frequentadores bem nascidos, que vendem porções de 4 coxinhas a 23 reais e têm quadrinhos de artistas de blues no banheiro. Até as 4h da manhã, todos do grupelho virtual foram impactados por fotos, mensagens e áudios dos radiantes amigos bêbados que lá estavam, dizendo: “TAMO EM DOZE, PÔ! EM DOZE, OUVIRAM?”, se referindo à 12ª colocação na tabela que passamos a ocupar. Eles eram o reflexo do espírito aliviado que tomou conta da torcida são paulina ali. Estávamos em estado de graça por uma vitória que, noutros tempos, nos pareceria tão corriqueira, mas em 2016 não era. Foi difícil, sofrida e importante. Mais que isso, foi animadora, pois desconfiávamos que ali nascia um jogador especial, que, entre um gole na catuaba aguada e outro, nos deu o direito de sonhar.

 

 

Segunda-feira, 30 de janeiro de 2017. Surge a bomba: o Ajax decide oferecer €15 milhões pelo futebol daquele garoto que ainda não fez nem 10 jogos. A se confirmarem os bônus por metas individuais e coletivas, o São Paulo terá recebido espantosos R$ 6.337.500 por cada partida que sua joia fez no time de cima com a camisa tricolor, além de ainda manter 20% dos seus direitos em futuras negociações. Neres, que já era observado pelos olheiros holandeses há mais de um ano, tinha contrato relativamente curto (até o fim de 2018) e é empresariado por Giuliano Bertolucci, agente conhecido por seus fortes contatos na Premier League e que também cuida das carreiras de Willian, David Luiz, Marquinhos, Thiago Maia, Rafael Carioca e Bernard. Nos corredores do Morumbi, Bertolucci tornou-se persona non grata em 2010, quando fez o então jovem Oscar – que desfrutava exatamente do mesmo status de xodó da base prestes a estourar no profissional de que Neres gozava hoje – sair de forma litigiosa do clube e tentou, sem sucesso, fazer com que Casemiro seguisse o mesmo destino pouco depois. Agora, ao que parece, optou por uma via mais diplomática para barganhar pela saída de seu pupilo, que está no Equador com a Seleção Sub 20. O endividado São Paulo, por outro lado, se viu entre a cruz e a espada, sob o enorme risco de perder sua pérola de graça ao fim do contrato.

 

A venda relâmpago pegou todos de surpresa, mas será que deveria mesmo? Dentre todos os 14 oriundos de Cotia que hoje treinam com Rogério Ceni no profissional, o ponta-direita era certamente aquele para quem se projetava maior crescimento na temporada. O trabalho de prospecção dos mais astutos clubes europeus (aqueles que costumam comprar barato, concluir a formação dos jovens talentos e vendê-los por quantias muito mais altas) começa nas competições de base. Nelas, sob a batuta de André Jardine, o sub 20 do São Paulo jogou grande futebol e varreu praticamente todos os títulos possíveis em 2015 e 2016: Libertadores, Paulista, Copa RS, Copa do Brasil e Copa Ouro, tendo Neres como destaque absoluto. Não estamos falando, portanto, de um anônimo para quem acompanha e monitora o universo da base. Pelo contrário: o agora jogador do Ajax era há tempos tido e havido como the next big thing no criadouro são paulino e seu debute na equipe principal até demorou, graças aos quase 6 meses de 2016 que passou recuperando-se de uma lesão no ombro, antes de ser acionado por Ricardo Gomes e apagar o fogo contra o Fluminense.

 

Lyanco, David Neres e Luiz Araújo comemoram gol do São Paulo
O que surpreende não é exatamente a venda, mas sim seu timing apressado (sem novelas, um desfecho rápido e certeiro bem no finzinho da janela de inverno), o alto montante envolvido e o destino. A Eredivisie acostumou-se há mais de 10 anos a ser o patinho feio das maiores ligas europeias. Seus clubes se recusaram a entrar nos delírios consumistas que levaram tantos outros dos países vizinhos a quase falir (Borussia Dortmund, Lazio, Leeds, Valencia, Milan, Marseille e PSG são bons exemplos). O futebol holandês tornou-se formador e exportador de pé-de-obra dos bons, como o brasileiro. Em outras palavras, falando friamente, a Holanda é um trampolim: quando adquire atletas, não costuma despender valores exorbitantes e sempre privilegia jovens com bom potencial de revenda. Os €15 milhões, nesse sentido, vêm como uma surpresa e uma indicação de que os Godenzonen têm absoluta certeza de que David Neres valerá muito mais no futuro. Trata-se da 3ª maior compra da história do futebol holandês, atrás apenas de Mateja Kezman (para o PSV em 2000, por € 16,3 milhões) e Miralem Sulejmani (para o próprio Ajax em 2008, por € 16,25 milhões).

 

A transferência representa um duro golpe para os planos de Rogério para a temporada, mas, mais importante que isso, relembra de maneira um tanto cruel como é sempre difícil justificar e mensurar em números, gráficos e lógicas cartesianas a decepção do torcedor que vê, impotente, seu time se enfraquecer e um ídolo em potencial dar adeus antes mesmo de se habituar a dar autógrafos. Para o Tricolor, contudo, fica claríssima a lição em forma de metáfora: quando um incêndio se alastra – seja no time que parece rumar anestesiado para o rebaixamento, seja no caixa – é a base que faz o papel de bombeiro. É ela que, esportiva e financeiramente, exercerá papel fundamental para tirar o clube do atoleiro em que se meteu. Os R$ 24 milhões anualmente destinados a Cotia têm de ser considerados um investimento de sobrevivência, e nunca um gasto. Se hoje o São Paulo se vê obrigado a arrecadar R$ 60 milhões com vendas de jogadores para fechar 2017 no azul e afrouxar a corda no pescoço, isso se deve não apenas a escândalos comprovados de corrupção de ex-cartolas, mas também à política recorrente de relegar as pratas da casa a segundo plano para privilegiar medalhões medianos e custosos, que ao longo de todas suas passagens trouxeram menos resultados esportivos que o menino David Neres em apenas 34 minutos de futebol naquela noite de segunda-feira. Escolhas ruins, irresponsáveis e puramente midiáticas demoram alguns anos, mas cobram seu preço: matam os sonhos dos torcedores pela raiz