O time de Dorival jogou como Rogério Ceni planejava

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GloboEsporte.com

Pedro De Luna

Salve, devotos do maior Ronaldo,

Em janeiro, na Florida Cup, um empolgado São Paulo encarou um ressabiado Corinthians e, apesar dos 90 minutos sem gols, executou muito bem uma proposta que parecia que daria samba. Com Cueva flutuando pelo meio de um 4-3-3 bem azeitado, pontas velozes e habilidosos e muita imposição física para cercar o adversário e retomar a bola o quanto antes, aquela equipe causou boa impressão e retornou ao Brasil com o simbólico troféu amistoso, além de belas fotos na montanha russa da Disney. De lá pra cá, muito aconteceu: uma conturbada eleição, uma sequência de merecidas eliminações, séries de lesões, uma horrenda camisa de treino colorada escrito “Inter”, um desmanche avassalador no elenco, uma troca de comissão técnica e o drama da zona de rebaixamento talvez possam resumir o período, pautado principalmente por uma tenebrosa gestão do futebol por parte do presidente eleito e sua diretoria, pelo abraço terno e comovente que a torcida deu ao time claudicante e pela marcante presença de um saco de arroz Urbano a cada coletiva que um jogador dava.

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O tal “time que ataca bem” mal saiu do papel e não tardou a sumir, dando lugar a uma equipe bem mais precavida, por vezes até blasé, sem azeite algum para ligar os setores e com dificuldades de propor o jogo frente a equipes melhores que o PSTC e o Novorizontino. O 4-3-3 original cedeu espaço a variações entre o 4-1-4-1 e até mesmo o 3-4-2-1. Saiu muita gente, na contramão dos contratados Petros, Hernanes, Arboleda e Marcos Guilherme, do promovido Militão, e se juntaram a Pratto e Jucilei, principais reforços do primeiro semestre e que também não participaram da pré-temporada nos Estêites. Aqui há um ponto importante: a lesão de Wellington Nem na estreia do Paulista, ante o Audax, trouxe consigo um efeito colateral até hoje pouco percebido, mas que foi impactante na ideia de jogo a ser implantada, já que fez com que Rogério Ceni abortasse seu plano de ter Cueva como meio-campista interno. Sem Nem, o peruano foi deslocado para a ponta-esquerda e abriu-se vaga para o xodó Cícero entrar na equipe titular, que, passado o frenesi inicial, a cada partida passou a se caracterizar mais pela lentidão de pensamento e execução nas suas transições ofensivas e defensivas. O “time que ataca bem”, para a tristeza geral, foi um feto natimorto, ainda que o então treinador não reconhecesse.

Primeiro tempo

Nove meses depois, num contexto bem mais hostil, a equipe que Ceni sonhou dar à luz finalmente nasceu, filha de outro pai. Quis o destino que, frente a um Corinthians muito mais seguro de si e entrosado que aquele de janeiro, Dorival Júnior se utilizasse do mesmo insight do antecessor: por que não ousar e ter Cueva onde ele se sente mais confortável? Claro que repetir a bem sucedida estratégia do segundo tempo contra o Vitória trazia também um risco. Enfrentando o virtual campeão brasileiro e seu modus operandi sempre calculista, tendo uma equipe ciclotímica e bipolar como o atual São Paulo em mãos, lutando a murros contra o fantasma da B, essa escalação significaria abrir mão de Jucilei, um dos esteios da equipe, mas a contrapartida era um horizonte vasto de possibilidades vindas dos pés do camisa 10 peruano, caso estivesse num de seus dias mais brilhantes. E ele estava deveras inspirado. Não, não foi Cueva o dono do jogo, mas o endiabrado meia de tapas curtos na bola, com seu posicionamento mais central e livre para flutuar, foi elemento-chave para o amplo domínio são-paulino durante grande parte do clássico, em que o Tricolor surpreendeu e teve bela atuação.

Taticamente, foi curioso notar que Fabio Carille optou por inverter os lados de Romero e Jadson, apostando no maior fôlego do azougue paraguaio para conter os avanços de Junior Tavares, enquanto seu camisa 10 (em atuação lastimável de 45 minutos) ficaria com a tarefa de vigiar Eder Militão, um lateral defensivo. Para sair da mesmice, os encaixes por setor no miolo do gramado necessitavam de algo além de Cueva buscando receber nos espaços entre as linhas e Hernanes buscando a jogada individual, e foi aí que apareceu um monstro no gramado. Petros, o pai de família, foi sublime, esplendoroso, gigantesco e jogou até muito mais do que se previa que podia. O camisa 6, disparadamente o melhor em campo, quebrou o script de atribuições básicas de um volante e se fez onipresente pelo relvado do Morumbi, como um autêntico elemento surpresa. Como podia o meio-campista mais defensivo do São Paulo ser o homem a pressionar Cássio quando o Corinthians tentava esfriar o jogo? Como podia o jogador em tese mais recuado do nosso meio-campo ser ao mesmo tempo uma máquina de desarmes, divididas e interceptações de passes e também quem mais pisava na área adversária? Com Petros totalmente on fire, o São Paulo estava sempre em superioridade numérica onde quer que fosse.

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E foi numa dessas investidas que ele tirou um lindo coelho da cartola e, contando com um golpe de vista fracassado do goleiro de camisa amarela, fez um chuá na bochecha das redes de seu ex-clube, levando mais de 61 mil tricolores à catarse absoluta: 1×0! O Morumbi estava flamejante como o autor de seu gol, as almas em chamas se abraçavam, inebriadas nem tanto pelos goles numa insípida cerveja sem álcool, mas por um time que nos calava as próprias bocas, exatamente como sonhávamos. A Lei do Ex finalmente funcionou a nosso favor! Não estávamos apenas vencendo, não achamos um gol: construímos um gol, tijolo a tijolo, por 27 minutos, até que ele finalmente aconteceu. Merecemos amplamente, e isso já podia ter acontecido antes, quando nos primeiros instantes, Pratto escorou de cabeça para Hernanes, livre, isolar. Ou pouco depois, quando o mesmo Profeta enfileirou corintianos e finalizou mascado, de direita, impedindo assim que o Cícero Pompeu de Toledo visse mais um gol de placa seu. Frente a uma defesa que se acreditava ser intransponível, o outrora previsível São Paulo soube criar alternativas, sufocar e forçar erros, muitos erros, com sua postura sempre combativa no campo ofensivo. De algum lugar da Inglaterra, Michael Beale deve ter pensado: “Bravo, Dorival! Well done“.

No intervalo, com o 1×0 a favor, o clima que passeou pelas arquibancadas variava entre o “ainda não ganhamos nada“, o “esse time é traiçoeiro, ilude a gente, daqui a pouco entrega um gol“, o “tem que matar logo esse jogo” e o “rapaz, essa cerveja sem álcool é pior que passar sede“. Ninguém queria dizer com todas as letras que o São Paulo estava jogando muita bola, que Arboleda estava colocando Jô no bolso e que o segundo gol era questão de tempo. E quem sou eu para culpar o azedume tricolor? A zica é magnética e pune os sorridentes e empolgados, quando se é são-paulino a gente sabe disso.

Segundo tempo

O ritmo frenético da primeira etapa se repetiu na segunda metade. O Tricolor seguiu bem na partida, Arboleda, Petros e Pratto em especial tiveram performances absolutamente memoráveis, mas a estratégia se alterou de maneira sutil. Não era mais imperativo (tampouco possível) forçar o erro do Corinthians no seu campo de defesa, primeiro porque manter aquela intensidade por 90 minutos debaixo do sol do meio-dia de quase-verão brasileiro era humanamente inviável; segundo porque o Tricolor aparentava ter bons arcos e boas flechas para executar um contra-ataque mortífero, com o adversário desguarnecido na busca pelo empate; e terceiro porque o time de Fabio Carille finalmente saiu da passividade absoluta e veio para cima como pôde. Isso não significava dar campo aos alvinegros, que embora tenham melhorado com a entrada de Marquinhos Gabriel em lugar do opaco Jadson, seguiam recebendo muito combate no meio-campo e errando tanto ao ponto de não conseguirem finalizar uma única vez sequer ao gol de Sidão até 30 e tantos minutos do segundo tempo.

E aqui não se pretende fazer análises redundantes e oportunistas. Comentar futebol é ser um eterno engenheiro de obra pronta, e portanto as opiniões precisam assumir o compromisso de serem honestas, e não meramente resultadistas. Contar a história de trás pra frente costuma ser tão cômodo quanto cínico. Dorival foi brilhante na corajosa escalação e na ideia de jogo ultra-agressiva que pôs em prática quase à perfeição. Faça-se justiça, o treinador também não teve culpa se faltaram pernas a Cueva e ao amarelado Lucas Fernandes, cujos ritmos nitidamente caíram. A opção por Jucilei no lugar do peruano, aos 30, foi compreensível, e não necessariamente representava uma abordagem conservadora do jogo, que até ali vencíamos. Afinal, quem mais poderia executar o papel de Cueva, um dos jogadores mais sui generis do Brasil, naqueles 15 minutos finais? Havia meio-campista mais confiável que Jucilei no banco? Contudo, 10 minutos antes disso, a escolha pelo atrapalhadíssimo Denílson, um ciscador, em lugar do fatigado Lucas Fernandes, um passador, foi difícil de entender e nos trouxe algumas consequências práticas. Subitamente, o Tricolor que antes tinha três exímios passadores se viu limitado a ter apenas um pensador em campo: Hernanes, o mais veterano do trio, exaurido debaixo do sol escaldante.

Do lado de lá, Carille lançou sua equipe para o tudo ou nada, sacando Gabriel e colocando Clayson. Assim, formou duas linhas de 4, posicionando Romero e Jô centralizados à frente. O São Paulo, no seu 4-3-3, foi sendo empurrado para trás, mas ainda tinha a situação sob seu relativo controle, diante da dificuldade criativa de um Corinthians que sofria com as más jornadas de Arana e Rodriguinho, e com a (cabe repetir) gigantesca atuação do trio Arboleda, Petros e Pratto, dominando cada setor do campo o quanto puderam, brigando por cada palmo de gramado como se sua vida disso dependesse. Eis que a humanidade testemunhou o lance que definiu tudo e justificou todo aquele sábio pessimismo tricolor do intervalo: num ato que jamais saberemos se foi de displicência ou absurda inocência, Junior Tavares decide proteger uma bola fraca pela linha de fundo em vez de bicá-la para onde seu nariz apontava, como qualquer defensor com um mínimo de seriedade e concentração faria sem hesitação. O até então obscuro Rodriguinho acreditou na jogada, salvou a bola, aplicou um humilhante drible no lateral e jogou no pagode, pegando a zaga são-paulina desprevenida pela pataquada de Junior, o juvenil. Sidão ainda defendeu a primeira finalização corintiana (no jogo todo), mas na segunda, de Clayson, o endereço foi o barbante. Silêncio sepulcral no Morumbi, apenas interrompido por aqueles que, filhos de Deus que são, não resistiram e xingaram todas as gerações da família Tavares.

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Ainda houve a tentativa por Maicosuel e até uma grande oportunidade de nova Lei do Ex, em boa cabeçada de Jucilei nos acréscimos, mas o clima de funeral já estava brevemente instaurado. Uma vitória que sentimos escorrer pelos dedos numa manhã em que o time que fez da zona de rebaixamento sua morada (e das atuações chochas uma rotina) dominou amplamente o poderoso virtual campeão brasileiro. O sabor amargo deixou uma lição: não basta jogar bem por 89 minutos e se descuidar em um. Não neste esporte que odiamos amar. Não contra um adversário deste nível, por mais inferiorizado que ele pareça estar. Não se pode ser piedoso, desperdiçar oportunidades nem perder a seriedade. Nem o futebol nem tampouco um clássico permitem isso. Para um ano que desde junho já se sabia ser morto, tais ensinamentos tendem a ser preciosos na luta contra o fim mais trágico de todos.

Ao sair do estádio, me vi inconformado com o placar. Ao me ver inconformado com o placar, porém, percebi que não sentia isso há tempos: o São Paulo foi São Paulo. Contra todas as expectativas, jogou muito bem e mostrou quem manda no Morumbi, mais do que em qualquer partida de 2017. Soa como pouco, mas hoje em dia já é muito. Dizem os mais otimistas que o rascunho que a dupla Ceni/Beale desenhou em janeiro finalmente ficou pronto. Eu, cético como esse time me ensinou a ser, prefiro esperar a sequência de jogos para celebrar algo. Que essa grande atuação se repita, sem mais vacilos.

Um adendo necessário: a arbitragem

Este tema é realmente chato, maçante e repetitivo. Que Avallone, Solera, Dalmo e Chico me perdoem, mas toda vez que eu assistia o saudoso Mesa Redonda na adolescência e chegava o bloco de “lances polêmicos da rodada”, já mudava logo de canal e punha no Domingo Maior (que geralmente passava algum filme do Steven Seagal). Me interessa muito falar sobre o belo jogo de futebol que assisti neste domingo, mais do que teorias conspiratórias mirabolantes que tendem a se moldar à conveniência e ao humor do momento. Acho, de verdade, que se formos entrar nesse terreno, devemos obrigatoriamente ter a dignidade de reconhecer sempre que os erros dos juízes nos beneficiarem também, sob pena de perdermos de vez nossa credibilidade.

Isto posto, é preciso registrar que o resultado de 1×1 foi sim condicionado por um erro capital (e, diga-se, bastante primário) do árbitro Wagner do Nascimento Magalhães, que viu falta de Pratto (que, parado, inclusive foi empurrado de maneira não faltosa por Balbuena) no atabalhoado Cássio e anulou assim o gol legítimo de Éder Militão no início da segunda etapa. O que seria o jogo naqueles 35 minutos restantes com um placar de 2×0? Ninguém é capaz de saber, visto que nas partidas contra Ponte e Vitória o São Paulo obteve essa mesma vantagem e, em uma, a desperdiçou, e na outra, quase. É possível presumir, porém, que o jogo ficasse bem mais administrável.

Houve outros lances reclamados, como: 1) o recuo de Pablo para Cássio (intencional, a meu ver – e ali seria uma falta em dois lances na linha da pequena área); 2) a bola na mão de Pablo dentro da área (sem qualquer intenção ou possibilidade de tirar o braço – convenhamos que seria totalmente absurdo se fosse marcado este pênalti); 3) o pisão do já amarelado Maycon em Petros (visivelmente não intencional – assim como o de Lucas Fernandes na primeira etapa, este sim punido com cartão amarelo); 4) o “abraço” de Hernanes em Rodriguinho, que finaliza desequilibrado na área (lance interpretativo, em que um juiz extremamente rigoroso daria pênalti. Eu sinceramente não); 5) puxão de Rodriguinho em Junior Tavares no lance do gol de empate (honestamente, nenhum replay me convenceu de lance faltoso, uma vez que Tavares já caía em direção à linha de fundo antes mesmo de receber o suposto puxão. Foi vacilo brabo dele mesmo).

Independentemente do que penso, vejo essa quantidade imensa de lances extremamente duvidosos e me pergunto até quando seguiremos a achar que a graça do futebol reside nos erros grotescos e/ou invisíveis de arbitragem, na sua falta de critérios e nas discussões acaloradas e teses maniqueístas daí decorrentes. O que há de divertido nisso? Até quando estaremos na manada daqueles contrários ao uso da tecnologia na correção dos erros humanos dentro do campo, em vez disso optando por acreditar no binarismo da “boa fé” e “má fé”? Enquanto seguirmos por aí atacando sintomas, ignorando as causas e nos recusando a tomar o remédio que reduz seus danos, a verdade é que pouco importará a qualidade da fé dos árbitros, parece que nós sempre mereceremos estar à mercê dela.

 

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