GloboEsporte
Alexandre Lozetti
Atual comentarista dos canais Globo conta como conseguiu manter o Tricolor paulista no topo do futebol brasileiro.
Muricy Ramalho não construiu apenas um São Paulo campeão. Foram três consecutivos. Atual companheiro de comentários nos canais Globo, o ex-técnico atendeu o blog durante a quarentena para falar sobre os desafios de chegar ao topo do futebol nacional, e se manter. No comando do seu Tricolor, Muricy conquistou os títulos brasileiros de 2006, 07 e 08.
Nessa entrevista, que dá sequência aos bate-papos sobre times marcantes do país neste século, Muricy relembra um dos períodos mais gloriosos de sua carreira e também da história do São Paulo.
Você chegou ao São Paulo dias depois do título mundial. Como foi assumir uma equipe tão vencedora e manter essa fome para 2006?
– Quando o treinador chega num time que está muito mal, ele tem a dificuldade de armar o time num momento ruim, mas para mim é mais difícil chegar a um time que ganhou tudo. Foi o que encontrei. Não podia nem olhar direito, os caras estavam cheios de marra, não queriam treinar um pouco a mais, a comissão técnica e os dirigentes um pouco acomodados. O cara com mais fome era eu. Para fazer os caras arrancarem de novo, entenderem que a vida continuava, foi complicado. Tinha ganhado Libertadores e Mundial. Fui colocando minha maneira de ser, eles foram comprando a ideia e pegaram no tranco de novo.
Houve alguns revezes no início do ano, que até custaram o título paulista. Esses resultados te ajudaram a colocar os pés dos jogadores no chão?
– A gente nem se importava tanto se perdesse algum jogo porque era bom para mostrar que eles não eram invencíveis, não. Perdemos de times pequenos, mas com isso também vinha a desconfiança em relação a quem estava chegando. Era uma dificuldade gigante e nos anos seguintes foi a mesma coisa, porque ganhávamos o Campeonato Brasileiro e tínhamos que recomeçar. No futebol brasileiro, o cara costuma se acomodar quando ganha alguma coisa.
O São Paulo contratou, no início de 2006, jogadores como Leandro, André Dias, Alex Dias, Rodrigo Fabri. Depois chegaram Lenilson, Ilsinho, Lima. Era importante aumentar o elenco para estimular a competitividade nos que haviam sido campeões mundiais?
– É, e também trocar alguns jogadores porque esse negócio de gratidão no futebol é legal, obrigado, mas já vi tantos técnicos quererem agradar o jogador que ganhou títulos, ficar com ele, e começarem os problemas. Em alguns momentos tem que trocar, agradecer e tirar. Chegaram jogadores novos, estavam com fome, como eu, e começou o lado competitivo de novo. Assim houve mais resultados.
E como você escolhia entre os que ficaram e os que estavam chegando? Os treinos diziam, havia uma hierarquia dos campeões?
– O que o jogador de futebol mais olha no treinador é o senso de justiça. Se ele vê algum privilégio, se o craque não está jogando nada e o cara mantém, ou aquele que está treinando bem não tem oportunidade. E esse era meu forte, eu não tinha medo de nada. Eu sempre falava que quem estivesse bem ia jogar. Os caras antigos queriam manter a posição e os novos queriam ganhar. Era uma competição sem sacanagem. Tinha jogador que até se assustava quando eu botava para jogar.
E a questão dos três zagueiros? Era uma preferência sua ou o entendimento de que o time estava acostumado a atuar naquela função com Leão e Autuori?
– A característica do jogador vem primeiro. O São Paulo tinha zagueiros grandes, rápidos e que saíam para o jogo. Não adianta escalar três se os zagueiros dos lados não saírem, senão você fica com linha de cinco. Outra coisa que mudei é que meus laterais eram meias. Botei Souza, Jorge Wagner, o próprio Júnior eu fazia ir para dentro do campo e trazia o Danilo para fora. Senão ficaria muito justinho, todo mundo saberia como enfrentar. O único lateral mesmo que tive foi o Ilsinho (de metade de 2006 até meio de 2007). Até o Hernanes e o Leandro jogaram como alas, porque eles quase não voltavam. Era do meio para frente, às vezes pela beirada e às vezes por dentro.
São Paulo engrenou em 2006 com as chegadas de Ilsinho e Miranda, e chegou ao tetra no 4-4-2 clássico — Foto: GloboEsporte.com
Em 2006, você foi campeão com o Ilsinho na lateral direita, num 4-4-2. Mas em 2007, seu lateral muitas vezes foi um zagueiro. Breno, André Dias, Alex Silva. E com eles você alternava o sistema de jogo sem fazer substituições. Essa foi a marca do time de 2007, que sofreu pouquíssimos gols?
– É verdade, com o Breno eu transformava em linha de quatro sem fazer trocas. Para não ficarmos manjados. Quando você fica muito tempo num lugar, tem que modificar treinamentos, um pouco da parte tática. O jogador brasileiro enjoa, fica de saco cheio dos treinos, é sempre a mesma coisa. Eu treinava para modificar o time sem trocar os jogadores. Isso também criava uma novidade para eles.
Em 2007, São Paulo bate o América-RN por 3 a 0 na 34ª rodada e conquista o Brasileirão
E como foi essa busca por novos treinamentos durante os três anos e meio que você esteve lá?
– Acho que você tem de dar o treinamento de acordo com o que aconteceu no jogo passado. Se errássemos muitos passes, durante a semana tínhamos que corrigir esse problema. Eu tinha curiosidade de mudar alguns treinos, às vezes da minha cabeça, em outras de ver futebol. Antigamente, era mais fácil ver treinamentos, algum movimento que a própria televisão mostrava e a gente adaptava. Era preciso criar algumas coisas.
Ao longo do tricampeonato, o São Paulo perdeu muitos jogadores e contratou muitos também. Como era essa movimentação? E como era a sua atuação nisso?
– Aquele time ganhou três títulos brasileiros e chegou à final da Libertadores, estava sempre brigando por alguma coisa. Eu, o Tata e o Milton Cruz (auxiliares de Muricy no São Paulo) temos amigos empresários, conhecíamos o mercado, sabíamos quem iríamos perder, quem estava valorizado, em conversas adiantadas. Estudávamos o mercado e o Juvenal (Juvêncio, presidente do São Paulo entre 2006 e 2013) nos dava toda liberdade. Sabíamos também que jogadores de outros times ficariam sem contrato e tinham renovações difíceis. E na época todos queriam vir para o São Paulo. Ele sabia que receberia em dia, brigaria por títulos, teria visibilidade.
Quais foram as contratações mais certeiras que vocês fizeram?
– Não olhávamos jogador mais ou menos, não. Queríamos jogadores prontos, mas sabíamos que futebol é negócio e o Juvenal sempre dizia que o São Paulo precisava contratar jogadores para se valorizarem. O Ilsinho ainda era desconhecido no Palmeiras, em formação, quando trouxemos. Ele deu uma resposta muito grande e logo foi vendido. O Miranda estava no Sochaux (FRA), ia para o Internacional, mas falamos com ele e veio para o São Paulo. Fez um trabalho muito bom e teve custo baixíssimo.
E o Borges, que acabou sendo o grande protagonista da reta final do título de 2008, com gols em todos os jogos?
– Ele havia sido meu jogador no São Caetano e estava no Japão. Ele fazia gol em qualquer lugar, mas não se adaptou bem fora de campo, ele e a esposa. Ele me ligava e dizia: “Professor, me tira daqui, estou passando sufoco, minha mulher está mal, com depressão”. Eu falei para um diretor que precisávamos de um centroavante, e ele dizia: “Quem é Borges? Ninguém conhece, como vamos trazer?”. Mas eu conhecia. É coisa de amador, esses curiosos do futebol. Aí, num fim de semana, o LANCE! publicou que o Corinthians queria o Borges. Esse mesmo diretor veio correndo me contar e eu disse: “Estou falando há meses para o senhor trazer, e o senhor pergunta quem é. Agora vai ficar mais caro”. Mas ele havia nos dado preferência.
Em 2008, São Paulo vence o Goiás por 1 a 0 e conquista o Campeonato Brasileiro
Essa não deve ter sido a única vez que você e os dirigentes discordaram sobre reforços, não é?
– O dirigente às vezes não conhece. Quando eles queriam contratar alguém e eu falava que não servia: “Como não serve?”. Alguns já tinham operado (ligamento) cruzado, outros tinham problema de recuperação, de grupo, caíam na noite. Eu já tinha ligado para o técnico dele. Eu vivo disso, conheço todo mundo, mas eles ficavam invocados porque queriam trazer. Era sugestão de empresário. “Você não gosta de nenhum que eu falo?”, eles perguntavam. E eu respondia: “No dia em que o senhor falar um bom, eu quero”.
Ou seja, foram anos desgastantes tanto na relação com o elenco, de manter a fome, quanto com a diretoria. Nesse contexto, qual foi a importância de ter sempre o mesmo capitão, o Rogério, um jogador com tanta ascendência tanto no time como na diretoria?
– Eu conhecia o Rogério desde garoto, fiz a mudança dele (para o time titular, no fim de 1996) com o Zetti. Foi a coisa mais difícil que fiz no futebol porque o Zetti era um ídolo, era o Rogério Ceni da época, era o cara. E muito meu amigo e do próprio Rogério, frequentava nossas casas. Só que o Rogério estava pedindo passagem, arrebentando nos treinamentos, e disse que se não fosse aproveitado iria embora. Tive facilidade de trabalhar com ele porque ele sabia que tipo de jogador eu queria, pensava, ele também era muito competitivo. Nós pensávamos muito parecido. E ele era o cara do time, o ídolo. O jogador que chegava era esperto, se sentava ao lado do Rogério e ficava olhando o que ele fazia. E ele só fazia coisas positivas. Treinava para caramba, não chiava de concentrar, se preocupava com o time. Então os outros ficavam pianinho. Ele fazia o papel de capitão mesmo, de cobrar e dar exemplo. Porque uma hora o treinador fica chato e precisa deixar que eles se resolvam.
O São Paulo, penta em 2007, alternava do 3-5-2 para o 4-4-2 com Breno virando lateral, Richarlyson ou Júnior recuando à primeira linha, e Souza e Jorge Wagner abertos na segunda. Sem a necessidade de fazer substituições — Foto: GloboEsporte.com
Muricy, uma das grandes soluções que você encontrou em 2007 foi a dupla Richarlyson e Hernanes, em substituição às saídas do Mineiro e depois do Josué. Ambos atuavam em muitas posições, como se deu essa junção de características que, na prática, funcionou tão bem?
– Os dois eram muito fortes fisicamente. Richarlyson até hoje é um atleta. Eu olhava o Hernanes desde o início, e ele jogava de lateral-direito, lateral-esquerdo, meia, dali a pouco foi centroavante no Santo André. Para o treinador é legal ter um coringa, mas para o jogador é muito ruim. Joga de tudo e ao mesmo tempo não é nada. No início de 2007, o São Paulo mandou um time reserva a uma excursão na Índia, e nós pedimos ao Silva, que seria o treinador, para escalar o Hernanes como segundo volante porque tínhamos perdido o Mineiro. Tentamos de todos os jeitos convencê-lo a ficar, o Juvenal aumentando seu salário, mas não deu. Na volta, o Silva disse que ele jogou muito bem. Então não foi difícil. Ele passava bem, arrematava, driblava, aquela pedalada que faz até hoje. Era um volante diferente para a época. E o Richarlyson tinha muita força e potência, dividia o campo por ser canhoto, dava proteção ao ala. Ambos davam muita opção, não eram fixos, tinham liberdade de ir à frente.
E ter um volante canhoto é um privilégio para iniciar as jogadas, não?
– Pois é, e tínhamos uma jogada que era abrir o Jorge Wagner pela esquerda, e quando ele estava muito apertado, o Richarlyson passava por fora, indo para o fundo. Um destro teria muita dificuldade. O Richarlyson, além de forte fisicamente, era inteligente.
Você disse muitas vezes que 2008, o hexa, foi o mais difícil dos títulos. Naquele ano, o São Paulo contratou Adriano, Carlos Alberto e Fábio Santos no primeiro semestre, mudou o perfil para tentar ganhar a Libertadores. Não deu certo, todos saíram, e a remontagem foi durante o campeonato. Isso tornou mais difícil?
– O time não rendeu bem com eles, foi desclassificado na Libertadores e eu já estava há muito tempo falando “não” para dirigente, havia o desgaste de quererem me tirar toda hora, principalmente depois de cair para o Fluminense. Chegou um momento em que os dirigentes não iam mais ao CT.
Muricy Ramalho pelo São Paulo em 2008 — Foto: Divulgação
E você não pensou em sair, nesse cenário?
– Eu tive uma proposta muito alta do Catar e perguntei ao Juvenal: “Como sempre, sua turminha quer me tirar. Vou ficar ou não?”. Ele bateu na mesa de novo e falou: “Claro que vai ficar, mas não vamos desistir”. Aquele era o time mais limitado dos três anos, mas tinha caras muito fortes mentalmente, que queriam vencer. Hernanes, Jean, Hugo, Borges… E quando saíram os craques, os famosos, eles resolveram que seria com eles mesmo. Estávamos 11 pontos atrás do Grêmio e demos a volta, passamos por cima no segundo turno, baseados na disciplina tática e na vontade de vencer. Éramos ignorados pela diretoria, tive de convencer os jogadores de que era possível. Nesses momentos ruins, o técnico precisa ser melhor. E eu tinha facilidade com o grupo, a comissão e os funcionários do CT, todos do nosso lado. Remávamos de um lado, a diretoria remava para outro.
Reveja a entrevista coletiva de Muricy Ramalho após conquistar o título do Brasileirão de 2008
Já falamos do Borges, mas o Hugo também foi importantíssimo nesse fim de 2008.
– E ele não era muito bem quisto por todo mundo, mas jogou muito. Ele tinha uma força incrível e chegava à área do adversário toda hora, decidia jogo, por isso era importante para aquela função. Não era um armador, mas era outro atacante, com presença muito grande. Era um time taticamente muito aplicado e difícil de ser batido.
No hexa, São Paulo teve menos flexibilidade e opções, mas contou com a disciplina de todos, a inspiração de Hernanes, e os gols de Hugo e Borges, especialmente na reta final — Foto: GloboEsporte.com
É difícil falar de três anos de montagem, mas qual era a característica comum de todos esses São Paulo que vocês criaram?
– Se olharmos com carinho, havia uma ideia de jogo. O Carlinhos (Neves, preparador físico daqueles times) me ligou outro dia, e estávamos lembrando um conceito definido. O São Paulo sabia o que queria dentro de campo, tínhamos ideias e acreditávamos nelas. Isso fazia a diferença.
Quando você fala em ideia, é algo diferente do sistema, certo? O sistema, se 3-5-2, 4-4-2, era só um mecanismo para executar essa ideia?
– É, o número é o seguinte. Você dá a preleção com linha de três ou de quatro, mas quando a bola rola e os jogadores se movimentam, desmancha tudo. O que interessa é o que o time pensa com e sem a bola. Para mim, futebol não é muito difícil. Tem de haver uma ideia sem a bola, se vai marcar adiantado ou atrás da bola, tem que ser muito definido. E com a bola, fazemos o quê? Atacamos com os dois laterais, liberamos os volantes, pressionamos lá na frente após a perda? Os números mudam toda hora, o grande segredo são as movimentações. O Júnior e o Jorge Wagner vindo como meias, o Danilo abrindo na ponta esquerda. O volante pegando a bola e sabendo que o ala iria avançar, imediatamente o zagueiro também ia embora para dar apoio. Isso foi ficando automático.
E a ideia, qual era?
– Um time com muitas variáveis em seu sistema. O pessoal falava muito dos três zagueiros, mas os alas eram meias que vinham por dentro e chegavam ao gol adversário. A movimentação era o segredo. Eu estava revendo um São Paulo x Grêmio, que ganhamos no Morumbi, e era brincadeira a movimentação. O Leandro de fora para dentro, os volantes chegando, era uma confusão. Mas as pessoas se fixaram nos três zagueiros, isso até foi bom para nós. Quando jogávamos com três, eles saíam por fora. No meio-campo, marcador mesmo foi o Josué. Todos os outros – Richarlyson, Jean, Hernanes, Mineiro, Souza – saíam. Tudo envolvia liberdade.
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