‘Não quero morrer ali dentro’: Muricy e o medo após história do pai

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Adriano Wilkson e Vanderlei Lima
Do UOL, em São Paulo

Marinho Ramalho vendia frutas em um mercado onde hoje funciona uma estação de metrô e jogava bola em um areal onde hoje existe um shopping center. Nos fins de semana, levava o filho Muricy a campos de várzea, hoje varridos por prédios residenciais e escritórios em Pinheiros, zona oeste de São Paulo.

Durante um jogo, o meio-campista já cinquentão teve uma parada cardíaca em campo. Muricy, 20 e poucos anos, jogava no México. Estava prestes a levantar o troféu de campeão nacional, o primeiro grande título de sua carreira.

Não conseguiu um avião que lhe permitisse estar no velório do pai.

“Às vezes eu olho para os meus filhos e falo: ‘Vocês têm que aproveitar bastante o pai e a mãe de vocês'”, disse Muricy ao UOL Esporte, semanas depois de deixar o Flamengo e anunciar que dará uma pausa na carreira.

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Ele chegou a temer que o futebol também o levasse à morte precoce.

“Eu não vi o meu pai nem ser enterrado. Não é trauma, mas que a gente lembra muito a gente lembra. Meu pai era muito novo. O futebol por um lado é muito bom e por outro, é muito ruim porque tira tudo de você.

Acervo pessoal

Marinho Ramalho (de chapéu) morreu durante um jogo de futebol em São Paulo

Muricy Ramalho, tricampeão brasileiro pelo São Paulo, campeão da Libertadores pelo Santos e considerado um dos melhores treinadores do país, ainda não sabe muito bem o que será de sua carreira daqui pra frente. Cardíaco, 60 anos, ele decidiu se afastar dos gramados depois de inúmeros episódios de arritmia sofridos na lateral do campo.

Se ele tem medo de morrer?

“Todo mundo tem”, afirmou o treinador. “Acontece que como eu perdi meu pai assim, jogando bola, então isso é um problema sério que os médicos falam que eu tenho. Eu estou bem até, mas tenho o histórico, meu pai morreu disso e minha mãe também, de derrame.”

“Ali realmente é um lugar tenso, é um lugar perigoso. Eu não quero morrer ali dentro do campo, pô!

O histórico hospitalar de Muricy

Muricy sofre de arritmia cardíaca desde a época do tricampeonato brasileiro com o São Paulo (2006-2008). Quando ele treinou o Santos, precisou ser internado por uma diverticulite, uma inflamação no aparelho digestivo. O problema o acompanhou até sua última passagem pelo São Paulo.

Há um mês e meio, já no Flamengo, ele voltaria ao hospital para tratar do coração e não pôde acompanhar o time em um jogo no Ceará.

Danilo Verpa/Folhapress

Muricy tem estilo explosivo e frequentemente se impacienta em campo

Após renunciar ao comando flamenguista, o técnico pretende ficar o resto do ano sem trabalhar, cuidando da saúde, vivendo entre a capital paulista, seu sítio em Ibiúna e seu apartamento no Guarujá. Ano que vem, pretende buscar emprego, não como técnico, mas como coordenador. Quer trabalhar com futebol, mas não sob a pressão do banco de reservas.

Ao UOL Esporte, ele comentou sobre seu problema cardíaco: “Isso é uma coisa hereditária que não tem jeito, não tem remédio, não tem cura, não tem nada. Você pode tratar de tudo, mas isso aí vai continuar.”

Onde o pai de Muricy atuou e o que fazia da vida

Marinho Ramalho jogou na várzea paulista em times como o Brasil de Pinheiros e o Marítimo (deste último ele também chegou a ser presidente). Ele nunca quis se profissionalizar, e tirava o sustento da família de uma banca de frutas e hortaliças que mantinha no antigo mercado de Pinheiros, onde hoje está a estação Faria Lima do metrô.

“Meu pai não teve grande estudo. Tinha que acordar uma hora da manhã pra ir comprar verdura na Ceasa”, lembra o treinador, que às vezes o acompanhava.

Nessa época, o feirante era palmeirense. Quando os Ramalho se mudaram para o Morumbi abandonaram a banca, e Marinho passou a levar Muricy aos treinos do São Paulo. Lá o garoto começou a se destacar.

Marinho virou são-paulino fanático. Abriu uma lanchonete perto do Morumbi, aonde os jogadores tricolores iam para confraternizar após os treinos.

Ele estava sempre ao lado do campo quando o filho jogava e virou uma espécie de empresário, negociando contratos e dando conselhos de carreira.

Quando Muricy já estava no México, Marinho encontrou um amigo do filho em sua lanchonete. Ele o mirou por alguns segundos e depois o abraçou. Em seguida, começou a chorar nos ombros do garoto.

O menino era Denis Ormrod, hoje conselheiro do São Paulo. “Ele chorava e me chamava de filho da puta, dizendo que estava morrendo de saudade do Muricy”, lembra Denis, que é oito anos anos mais novo que o amigo.