O homem que amarra as chuteiras com as veias

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GloboEsporte.com

Pedro De Luna

ACTO 1: LAS ORÍGENES (1980-2002)

Em novembro de 1980, enquanto meus pais riscavam o salão das discotecas paulistanas ao som de KC and the Sunshine Band, algo de muito mais importante acontecia num rincão pacato de Canelones, Uruguai. Poucas semanas antes da realização do plebiscito que se provaria fundamental para derrubar a ditadura militar do poder em seu país, o casal Diana Moreno Acosta e Alfredo Antonio Lugano Valdivia dava as boas-vindas a seu segundo filho: Diego Alfredo. Mal sabia a obstetra que aquele recém-nascido estava fadado a ser protagonista de grandes mudanças do curso da história dos lugares onde pisaria. Mais precisamente, no Brasil e no Uruguai, nações umbilicalmente unidas por muito mais do que as duas pontas de um Maracanazzo e que, por obra e ironia do destino, veriam suas seleções se enfrentarem apenas dois meses depois do nascimento de Diego Alfredo, na final do Mundialito de 1980. Na ocasião, o troféu ficou com a tradicionalíssima Celeste de Rúben Paz, que confirmou sua fama de carrasco e bateu a temida seleção Canarinho de Cerezo, Oscar, Serginho Chulapa, Zé Sergio, Doutor Sócrates e, claro, Telê.

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Diego cresceu. Em sua adolescência, viu o antes glorioso futebol de seu país atravessar uma crise técnica, organizacional e financeira sem precedentes, entre os anos 90 e o início dos 2000, quando nomes como Recoba, Zalayeta, Bueno, Magallanes, Chevantón, Darío Silva, Estoyanoff e Richard El Chengue Morales carregaram as parcas esperanças de gols do selecionado charrúa, ausente das Copas de 94 e 98. Sofreu, como hincha fanático que era, e sonhou em ser um jogador de futebol, como Samuel Rosa bem cantava na época. Tornou-se zagueiro, como seu pai, Alfredo “La Tota“, havia sido por longos anos no Libertad, o time amador de Canelones. Jogando pelo clube de sua cidade e tendo a chave do cadeado, um dia Diego se deparou com um enorme desafio, o primeiro de tantos que viriam: marcar Wilmar “El Toro” Cabrera, histórico centroavante dos anos 80 no Nacional, Valencia (ESP), Nice (FRA) e na seleção, que vivia então seus últimos dias como jogador. E não apenas uma, mas duas vezes, em um par de jogos. Como um humano, e não como um deus, o jovem Diego Lugano teve medo, mas se saiu tão bem na missão que o veterano Cabrera o recomendou para o gigante Nacional, de Montevidéu.

No Bolso, foi treinado por Hugo De León, uma das maiores referências de defensa central e capitão que o futebol sul-americano já teve. Em 2002, foi emprestado ao minúsculo Plaza Colonia, debutante na primeira divisão, e lá se destacou, quando protagonizou campanha histórica ao derrotar o Peñarol no Centenário lotado, obter o vice-campeonato nacional e quase classificar-se à Libertadores. Aos 21 anos, Lugano já se caracterizava pelo estilo rústico de zagueirar, com muito boa presença em ambas as áreas e um jogo aéreo respeitável, e, mesmo tão novo, era capitão do escrete comandado pelo ex-atacante são-paulino Diego Aguirre – então iniciante na carreira de técnico. Conta-se que, antes de lhe indicar ao famoso empresário Juan Figer, o treinador lhe fez uma profecia: “Canário, você será o futuro capitão do Uruguai”. Humilde, Lugano riu e desconversou. Por dentro, certamente uma chama se acendeu. Era oficial: estava saindo da jaula o monstro.

Do outro lado da fronteira, a mais de 2 mil quilômetros dali, havia um gigante adormecido. O São Paulo, outrora acostumado a enfileirar títulos pelo planeta, vivia uma rebordosa que teimava em não passar. Os anos Telê estavam cada vez mais distantes e o Tricolor lutava contra sua sina de montar bons times, jogar o futebol mais belo do país e fraquejar na hora H, fato comprovado pelos inimagináveis 10 anos sem sequer disputar a Libertadores. Nos clássicos e decisões em geral, o torcedor são-paulino se habituou ao desespero de ver seu time, invariavelmente munido de sistemas defensivos fragilíssimos, se encolher diante dos rivais trocentas vezes mais ricos, turbinados por seus pomposos patrocínios. Para fins de justiça histórica, cabe registrar que ao longo do período houve valorosas exceções e foram revelados alguns dos grandes nomes da história do clube, como o eterno cracaço França, Serginho, Denílson, Dodô, Kaká e, obviamente, Rogério Ceni. O DNA de um time pecho frio, contudo, nos impregnou como um todo e parece que virou regra pelos lados do Morumbi. A torcida, por sua vez, alternava momentos de surreal exigência e de frieza extrema. Arquibancadas desertas eram uma cena frequente, excelentes jogadores passavam sem ganhar nada, as gestões batiam cabeça e a sensação clara era de que ninguém remava para o mesmo lado dentro do clube que demorou mais que todos para entrar no novo milênio e finalmente parar de viver das glórias que vinham do passado.

ACTO 2: LLEGÓ DIEGO, EL JUGADOR DEL PRESIDENTE (2003)

Em abril de 2003, desembarcou o desconhecido “jogador do presidente”, contratado por US$ 200 mil e apresentado no CCT pelo finado Marcelo Portugal Gouvêa, que, esbanjando confiança, tratou de assim introduzí-lo ao público: “Nunca o vi jogar, mas pedi a ajuda de amigos e empresários. Temos de confiar nas pessoas. É muito fácil trazer um Gamarra. Difícil é fazer um jogador crescer. O Lugano é uma promessa, e estamos confiantes. Dissemos que traríamos um jogador de nível de seleção e cumprimos o prometido“. Cercado de um pequeno batalhão de repórteres que lhe pediam sorrisos para as fotos e lhe enchiam de perguntas naquela língua difícil de aprender, o misterioso reserva do Nacional que o São Paulo havia acabado de trazer deu, em um par de respostas, um aperitivo de sua personalidade forte e decidida.

O primeiro obstáculo no novo país, porém, não era o idioma, e sim o treinador: Oswaldo de Oliveira não tinha pedido a contratação de Lugano e fez questão de reforçar publicamente que o novo reforço era sua última opção naquele plantel, que contava com Jean e Júlio Santos como principais nomes para o setor. Até que o pressionado Oswaldo fosse demitido pelos maus resultados, algumas semanas depois, Diego não entrou em campo. Sua estreia, já sob a batuta do interino Roberto Rojas, foi no Mineirão, contra o Atlético Mineiro. O Tricolor cedeu o empate no fim, Lugano não foi bem e foi logo brindado com a hostil manchete da Folha de S. Paulo: “Kaká e Luís Fabiano compensam Lugano“. Bem-vindo a este país, Diego.

Lugano é apresentado pelo presidente Marcelo Portugal Gouvea, em 2003

Pois essa era a hora de arregaçar as mangas e demonstrar do que aquele canário de 22 anos era realmente feito. Longas sessões de treino extra no CT da Barra Funda marcaram o início da trajetória de La Tota no futebol brasileiro. Se havia deficiências, havia como corrigí-las – ou ao menos minimizá-las. O passe, seu mais evidente calcanhar de Aquiles, era o primeiro fundamento a ser melhorado. Lugano jamais passou sequer perto de primar pelo refinamento técnico, mas buscou maneiras de contornar suas limitações para se tornar um jogador de elite. Teve o discernimento de absorver o lado construtivo das críticas – mesmo as maldosas e arrogantes, tão frequentes na imprensa esportiva brasileira – e trabalhar sem alarde para evoluir como atleta, tal qual um Daniel San da vida, para mostrar que não veio à terra natal de Bruno de Luca para fazer turismo e florear o currículo. Em vez de um compreensível melindre, mostrou auto-crítica e paciência para aguardar sua vez. Seu esforço não passou batido pelos companheiros, tampouco por Rojas, que voltou a lhe dar oportunidades e, desta vez, não se desapontou.

Melhor adaptado, Lugano aproveitou a chance e começou a demonstrar em campo e fora dele a ascendência que se tornaria sua marca registrada. Com uma equipe tecnicamente deveras limitada e repleta de pratas da casa em busca um lugar ao sol, de 1×0 em 1×0 o São Paulo foi subindo posições no primeiro Brasileirão por pontos corridos da história, até chegar à terceira colocação. As estrelas deram lugar à molecada sem grife, o futebol show cedeu espaço a um estilo operário (e bem mais competitivo) e o 4-4-2 em diversas ocasiões virou 3-5-2. Assim, aquele time conseguiu o que planteis muito mais talentosos, experientes e caros não haviam conseguido nos 10 anos anteriores: se classificar à Libertadores, a menina dos olhos de todo são-paulino. Mais do que isso, ao pelear por cada palmo de campo, cada bola como se fosse a última e jogar o máximo futebol que lhe era possível, aquela equipe de 2003 – até hoje esquecida por muitos – reatou o laço entre o campo e a arquibancada, que há tanto tempo estava frouxo, e demonstrou que, de vez em quando, uma dose de pragmatismo não faz mal a ninguém. O torcedor tricolor voltou a sentir o doce sabor de ganhar jogos na marra, em vez de entregá-los.

ACTO 3: LOS SUEÑOS SE HACEN REALIDAD (2004-2006)

Mesmo com o bom fim de temporada, no início de 2004 Diego retornou ao banco de reservas, preterido pela boa dupla Fabão e Rodrigo, os recém-contratados titulares do 4-4-2 de Cuca que surpreendeu e chegou às semifinais da competição mais importante do continente. Com Emerson Leão, no segundo semestre, o esquema 3-5-2 voltou de vez e, com ele, Lugano firmou-se definitivamente como o zagueiro central titular da forte equipe que já dava mostras do que poderia atingir num futuro próximo. Àquela altura, já era possível cravar: o uruguaio era o comandante da excelente zaga são-paulina. Feito um Cavaleiro do Zodíaco cisplatino, o Ikki de Fênix tricolor parecia exalar sua cosmoenergia pelas canchas país afora. A intensidade e a concentração com que aquele time cascudo jogava não faziam lembrar em nada o esquadrão da defesa molenga que, mesmo favorito, fora presa fácil do Santos de Diego e Robinho no mata-mata dois anos antes e acumulou frustrações nas épocas de vacas magras. Como podia um time tecnicamente inferior ao de antes jogar tão melhor? Muitos frequentadores do estádio diagnosticavam a notável diferença com uma simples alcunha: o efeito Lugano. O São Paulo, tal qual seu camisa 5, se sentia confortável no papel de azarão e sabia que tinha sempre algo a provar.

Com o estilo sério, boas atuações e a admiração crescente no Morumbi, La Tota recebeu sua primeira chamada para a seleção de seu país, das mãos de Jorge Fossati – que alguns meses antes havia sido seu adversário, como treinador da LDU na Libertadores. Um sonho realizado? Talvez, mas aos 23 anos, Lugano estava indo montanha acima e tinha fome e planos de conquistar muito mais. A situação delicadíssima nas Eliminatórias, a necessária reformulação no futebol de seu país, a gana de representar sua gente e deixar seu nome entre os que construíram a história da Celeste: os desafios sempre se colocaram no caminho do obstinado filho de Diana e Alfredo, que parecia ter prazer em enfrentá-los um a um, mas nunca sozinho. Lugano sempre foi absolutamente consciente de suas limitações e dominou como poucos o aspecto mental do jogo, tornando-se um líder aglutinador e carismático, bem como um mestre da catimba, como muitos de seus rivais podem atestar. No embalo do clássico canto “Volveremos, volveremos! Volveremos otra vez; volveremos a ser campeones, como la primera vez“, formava-se o embrião da geração que recolocaria o Uruguai no mapa da bola. Coincidência ou não, o mesmo fenômeno estava prestes a acontecer com o São Paulo, tendo La Tota como protagonista ao lado de figuras como Rogério Ceni, Fabão, Cicinho e Danilo.

lugano são paulo taça mundial de clubes

E então veio 2005, a temporada que alçou o camisa 5 ao panteão dos eternos são-paulinos e lhe deu enorme prestígio internacional. Os títulos Paulista, da Libertadores e do Mundial encerraram um longo jejum de um clube que ameaçara se apequenar anos antes, mas que se planejou para voltar ao topo e (meio por acaso, é bem verdade) encontrou numa indicação despretensiosa de um ex-atleta um alicerce fundamental para marcar a diferença entre o antes e o depois. As taças foram consequência de ajustes táticos, reforços pontuais, performances individuais acima da média, mas sobretudo da química existente no time em que Fabão, Alex Bruno e Edcarlos cresciam a ponto de, nas noites mais importantes, jogarem feito Oscares, Daríos Pereyras e Robertos Dias.

Negar as evidentes impressões digitais de Lugano nesse processo seria como ignorar a tatuagem de seu pisante na canela de Steven Gerrard ou o timing perfeito de seu desarme no chute de Kallon, do Al Ittihad, na semifinal em Tóquio. Na pressão infinita do Liverpool no Japão, a frieza de quem sabia já ter se tornado gente grande no futebol foi essencial para comandar a bateria anti-aérea que rebatia todos os chuveirinhos ingleses. No “jogador do presidente”, o torcedor são-paulino enxergava toda a segurança e firmeza que tanta falta lhe fez nos anos de seca. A equipe podia até perder, como na final da Libertadores de 2006, mas sempre com a certeza de ter esgotado até a última gota de esforço físico e mental antes e durante os jogos, e ter exigido o mesmo de seus rivais.

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