As finanças do São Paulo: as contradições de um time que prima pela ineficiência

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Epoca/GloboEsporte.com

As finanças do São Paulo em 2017 (Foto: ÉPOCA)

Àquela altura estreante como técnico, Rogério Ceni tinha a expectativa de formar uma equipe ofensiva no São Paulo. Inspirado em Jorge Sampaoli, o ex-goleiro vislumbrava jogar o tempo todo no ataque. Para que a mentalidade funcionasse, no entanto, queria ele que a direção não vendesse um atacante vindo das categorias de base, David Neres. Dizia a pessoas próximas que a perda era “inadmissível”. Não deu outra. Contrariado, viu o presidente Carlos Augusto de Barros e Silva, o Leco, desfazer-se do jogador para sanar problemas financeiros. Além dele, foram vendidos no decorrer da temporada o volante Thiago Mendes, o zagueiro Lyanco e o atacante Luiz Araújo. Todos da base. O clube obteve a maior receita de sua história com transferências e encerrou o ano de 2017 com superávit. Mal em campo, o São Paulo terminou o Campeonato Brasileiro na parte de baixo da tabela. Ceni foi demitido antes disso.

A sequência de fatos é típica de um time de futebol à beira do colapso financeiro. As saídas precoces de jovens talentosos são recorrentes no Brasil, sobretudo porque orçamentos de clubes estão estourados por todo lado. Gasta-se mais do que se arrecada, falta dinheiro para pagar despesas e dívidas, e aí a saída mais fácil é liberar jogadores para clubes europeus. O São Paulo não é exceção. Mas também não é um caso trivial. Geralmente, a administração que está prejudicada pelo descompasso entre receitas e despesas toma medidas para solucionar o problema, como adotar uma postura austera em relação a gastos e investimentos. O São Paulo não faz nada disso. Na mesma temporada em que se desfez dos direitos de quatro jovens baratos e valiosos, a direção de Leco aumentou a folha salarial, os custos administrativos e os investimentos feitos na aquisição de reforços.

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A ineficiência são-paulina fica evidente quando são comparadas as remunerações do futebol – salários e direitos de imagem do elenco – com a performanece esportiva. Quarta maior folha de pagamento do país, com R$ 169 milhões despendidos, a equipe dirigida por Ceni no primeiro semestre e por Dorival Júnior no segundo foi a 13ª na tabela do Brasileirão. Perdeu na Copa do Brasil na quarta fase, não jogou a Libertadores. O torcedor estava acostumado a muito mais. A título de comparação, as folhas mais próximas da tricolor renderam resultados muito melhores a adversários. O Grêmio gastou R$ 159 milhões e venceu a Libertadores. O Cruzeiro conseguiu a Copa do Brasil com R$ 149 milhões. Entre os que gastaram mais, o Corinthians foi campeão brasileiro, o Palmeiras foi vice-campeão, e o Flamengo, sob intensa crítica por ter conseguido tal colocação, ficou em sexto. Todos foram melhores do que o São Paulo.

Um clube financeiramente fragilizado, além de poupar em despesas, evita comprometer dinheiro com investimentos. A administração de Leco, não. O presidente aposta alto na compra dos direitos federativos de novos jogadores. Em 2017, foram gastos R$ 81 milhões com reforços, valor próximo dos R$ 89 milhões que o presidente gastara na temporada anterior em seus dois primeiros anos no cargo. O São Paulo é um time de reconhecida produtividade nas categorias de base – e as cifras gastas por europeus em seus jogadores mais recentes dão novos subsídios à fama –, que adotou a estratégia de usar a juventude como moeda de troca para que se invista na compra de jogadores rodados. O exemplo mais claro disso foi Lucas Pratto, adquirido no início da temporada em resposta e com o dinheiro da venda de David Neres. A lembrar, claro, que veteranos custam mais em salários do que jovens formados em casa.

O São Paulo é o time de futebol que mais arrecadou com transferências de jogadores no futebol moderno brasileiro. Nos últimos 15 anos, desde 2003, conseguiu mais de R$ 930 milhões com essa linha de receita. Talvez por isso tenha desenvolvido o hábito de contar as vendas de revelações para que a conta feche. A sua postura em relação aos atletas que peneira na base mudou, no entanto. Kaká fez três temporadas como profissional são-paulino e jogou 131 partidas antes de ser mandado para o Milan em 2003. Lucas ficou quatro temporadas e jogou 128 vezes pelo profissional antes de ir para o Paris Saint-Germain em 2013. Ambos puseram valores relevantes nos cofres tricolores – ainda que no caso de Kaká os torcedores tenham reclamado na época da quantia. O fato é que eles foram aproveitados pela equipe antes de partir. David Neres fez apenas oito jogos como profissional em 2016 e foi para o Ajax em 2017.

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As finanças do São Paulo em 2017 (Foto: ÉPOCA)

Ineficiência, exportação precoce. O orçamento depende das vendas de jogadores todo ano para não estourar as contas tricolores. A previsão para 2018 conta de novo com R$ 90 milhões em transferências para que o ano termine com superávit – baixo, mas superávit. Existem riscos decorrentes desse tipo de estratégia na gestão do futebol. O primeiro é que, mesmo para um clube com um histórico tão vendedor quanto o São Paulo, a demanda por seus atletas é uma variável difícil de planejar. Tanto que na temporada em que faturou menos com transferências, em 2015, quando entraram “só” R$ 41 milhões, o clube acabou a temporada com um déficit superior a R$ 100 milhões. Basta que o elenco tricolor passe por uma safra menos valorizada para que as finanças sejam ameaçadas. Outro risco é o de desperdiçar jovens com potencial superior ao de jogadores contratados. Rogério Ceni teria se saído menos mal em sua estreia como técnico se não tivesse perdido precocemente atletas da base?

As finanças do São Paulo apontam para indicadores que inspiram cuidados. Este é um bom momento para falar das dívidas. No que a máquina de fazer dinheiro dos atletas parou de funcionar, em 2014, o clube precisou contrair empréstimos para conseguir dinheiro. A dívida bancária disparou naquele ano até R$ 150 milhões. Essa grana foi tomada com instituições financeiras famosas, como o Bradesco, e outras de menor porte, como Tricury e Rendimento. Também está nesta conta a antecipação de verba a ser recebida da Globo pelos direitos de transmissão. O clube triangulou com um fundo chamado Polo: pegou quase R$ 18 milhões emprestados e entregou o contrato com a emissora em troca – com juros acrescidos para remunerar o credor, claro. A diretoria de Leco envidou esforços para reduzir o endividamento bancário nos últimos anos, visto que essa dívida vem com juros chatos, e conseguiu. Em 2017, o valor a pagar a bancos caiu para R$ 100 milhões. Melhorou, mas ainda há muito a pagar.

Outra parte relevante do endividamento são-paulino tem a ver com o perfil agressivo nas compras e vendas. Como é um clube que não tem nenhum pudor de comprar direitos federativos de reforços, vai adquirindo dívidas com os adversários com quem negocia. Petros, Lucas Pratto, Maicosuel, Jucilei, Arboleda, todos esses jogadores deixaram dívidas a pagar com suas respectivas ex-equipes. Ao todo são mais de R$ 77 milhões em aberto, um tipo de dívida que ÉPOCA classifica dentro de “outros”, junto de débitos com empresários e fornecedores. O lado bom é que o São Paulo também tem um bom dinheiro a receber por atletas que vendeu, cerca de R$ 109 milhões. Não que funcione assim na prática, mas, em teoria, o crédito que entrará nos cofres tricolores tende a resolver aquele débito a pagar. As coisas só darão errado nesta linha do endividamento se o São Paulo tomar calotes de seus credores. Se receber tudo o que lhe é devido, não sobra grande preocupação, apenas o acerto do fluxo.

Para que se tenha a visão completa da dívida são-paulinas, faltam as partes fiscal e trabalhista. Nenhuma delas põe medo departamento financeiro. Os impostos que deixaram de ser pagos foram renegociados, via Profut, um programa instituído pelo governo federal em 2015, e tiveram seus pagamentos parcelados e alongados pelos próximos anos. Basta se manter adimplente que estará tudo bem. As dívidas trabalhistas são em boa parte correntes. Traduzindo o financês ao leigo, nem toda dívida é resultado de um ato de irresponsabilidade. O balanço tem sua data de fechamento em 31 de dezembro de 2017. Entre os valores a pagar a partir de janeiro de 2018, há aqueles referentes ao mês anterior, de dezembro. Tem quem goste de nem considerar esses números dentro do cálculo de endividamento. A própria diretoria do São Paulo gosta de dizer que deve menos de R$ 100 milhões, o que na verdade representa só a dívida bancária. ÉPOCA insere todos os números e faz a ponderação de sua gravidade na análise para que o leitor entenda todo o quadro.

Na comparação com outros times, o São Paulo não é de jeito nenhum um caso preocupante. Com exceção à dívida bancária, que tem melhorado nos últimos anos, o endividamento tricolor está razoavelmente tranquilo. O faturamento tem crescido – puxado pelas vendas de atletas, mas também, de um modo geral, por incremento relevante na área de patrocínios em 2017. É a dependência das transferências de talentos e a flagrante ineficiência que puxa a administração para baixo. Acostumado por décadas a ser reconhecido pela capacidade financeira e pela boa gestão, o clube foi deixado para trás por adversários como Corinthians, Flamengo e Palmeiras – na grana e na bola. Se estivéssemos falando de um setor tradicional, em que o resultado de uma empresa não impacta diretamente no resultado da outra, o São Paulo seria um caso bem sucedido. Mas isso é futebol. Há competição. É melhor rever aquilo que tem dado errado para voltar a ser protagonista.

*Com infografia de Giovana Tarakdjian.