Paraná fala de soco que o tirou de Copa e diz por que doará corpo à ciência

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Vinícius Andrade /UOL Esporte

Ademir de Barros vive uma vida tranquila em Sorocaba. Almoça todos os dias no mesmo lugar, o clube União Recreativo, mora com os filhos e é vice-presidente de um clube ligado ao fomento do esporte. Ninguém o chama pelo nome. É um herói discreto e um homem imortal.

O herói discreto era o último nome de um time formado por Sérgio, Forlan, Jurandir, Dias e Gilberto (Tenente); Edson e Dias; Paulo, Terto (Benê), Toninho e ele, Paraná. O time do São Paulo que conquistou o título paulista de 1970, após um jejum de 13 anos. Gérson, o grande destaque, havia se machucado no jogo anterior. Pedro Rocha, o grande ídolo, estrearia duas semanas depois.

O homem imortal será estudado pela Ciência. Ademir de Barros, o Paraná, o garoto que começou jogando no Hei de Vencer, em Cambará e que chegou em Sorocaba em 1954, com 13 anos, doou seu corpo para a faculdade de medicina da Puc em Sorocaba, para utilização em pesquisas e estudos. A doação foi feita em 2005.

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Arquivo Pessoal

“Já vou estar morto mesmo. O que adianta ficar embaixo da terra? Melhor ajudar alguém”, diz o ex-ponta esquerda.

O ex-jogador pouco se lembra da comemoração daquele título de 1970. “Nosso time era bom, tinha chegado o Gerson e o Toninho. Ganhamos o título em Campinas, contra o Guarani e não fui para São Paulo, vim para São Roque e encontrei uns amigos. No ano seguinte, ganhamos de novo e a turma foi comemorar na casa do Manuel Raimundo (dirigente do clube), como no ano passado. Não fui. Opção minha. Uma vez, fomos campeões com o São Bento e puseram a gente em um carro de bombeiros. Quando passou perto de casa, desci e fui descansar.”

Paraná é assim. O sofrimento traz mais lembranças que a alegria. O que não esquece é a perda do título de 1967, que escapou no finalzinho do jogo contra o Corinthians.

Uma vitória daria fim ao jejum que só acabou três anos depois. Um empate levaria a decisão para um jogo extra contra o Santos. O São Paulo jogava praticamente com dez porque zagueiro Jurandir, contundido, fazia número na ponta esquerda. Não havia substituição. Paraná estava recuado para o meio.

“A gente estava acostumado a jogar com dez. O Nenê, que era meia, ia para a zaga. E eu recuava para o meio. Nem precisava fazer substituição. Eu tinha recuado e o jogo estava controlado. Então, teve a falta. Estava 1 a 0 para nós. Falei para o Walter Zum Zum jogar a bola longe, ele não fez. Deu a bola para o Corinthians cobrar. E marcaram. No vestiário, cobrei ele e e ele estava chorando. Falou que se chutasse a bola longe, ia expulso pelo Armando Marques. E eu fiquei mais bravo ainda, ia expulso, mas o jogo acabava. A gente merecia o título, no jogo desempate com o Santos do Pelé, perdemos. Eles eram melhores”.

Quem se lembra mais de uma derrota do que de um título inesquecível? Paraná. O volante que virou meia, o meia que virou ponta, o ponta que recuava e jogava como meia, o operário que jogou uma Copa e que tem certeza que brilharia em 1970, na seleção mais estrelar que o Brasil já teve. Um herói discreto.

O apelido Paraná é fácil de explicar. Ele nasceu em Cambará, cidade no interior do estado. Filho de Anísio, volante de alta conta na região, começou a jogar em 1951, com nove anos. Junto com os irmão e os primos, criou um timinho de rua, para enfrentar o filho de Bino, goleiro que jogou no Corinthians e que havia sido contratado pela Cambaraense. Depois, juntamente com o goleiro José Roberto Vezozzo, que é dono atualmente do Hotel Bourbon, criou o Hei de Vencer. Para jogar, contava com a cumplicidade de dona Francisca, sua avó, que o ajudava a enganar a mãe.

“Eu ia para a missa com a minha avó e depois quando saia, a gente ia para a casa do Roberto Vezozzo, minha avó Francisca ficava conversando com a mãe dele e eu trocava de roupa e ia lá jogar. Daí, voltava lá depois, tomava um banho lá na casa deles, colocava a roupa e ia para casa”. Quando chegava em casa, a avó garantia que Ademir havia ficado com ela, conversando com os mais velhos.

Anísio, depois de ser eleito o melhor volante no Norte do Paraná, abandonou o futebol em 1950, por conta de uma contusão no joelho. Trabalhava carregando saco para donos de armazém. A convite do irmão, mudou-se para Sorocaba em 1954. Ademir foi junto, é lógico, e já ganhou o apelido. Aprendeu datilografia e conseguiu um emprego na gráfica do jornal O Cruzeiro do Sul. E participou de um torneio de Primeiro de Maio. Foi campeão. Tinha 13 anos. Doze anos depois, disputaria uma Copa do Mundo.

“Nunca imaginei que poderia chegar tão longe. Meu irmão jogava mais do que eu. E meus tios diziam que se juntasse todos os irmãos, a gente era em cinco, não dava para amarrar a chuteira do meu pai. Quando eu estava no São Bento, dava ingresso para ele ver o jogo e ele nunca ia. Dizia que não ia perder tempo para ver perna de pau jogar”.

Paraná começou como volante no amador do São Bento. No primeiro treino, se assustou com a violência. Flavio Pitico, um ponta o aconselhou. Disse que era assim mesmo, que a turma batia sem dó. “Então, eu vou te ajudar”, respondeu Paraná.

Começou assim, aos 14 anos, a moldar seu futebol. Muito combativo, sem medo. Características que manteve a, ao se transformar em ponta. “Apanhei muito do Paraná”, conta Rivelino. “Apanhei, mas gostaria que fosse do meu time. Ele era muito combativo, ia na linha do fundo, mas voltava para ajudar. Não tinha medo de apanhar, não reclamava e batia também”.

Os dois poderiam ter jogado juntos. Em 1959, Rivellino tinha 13 anos e começava a jogar futsal. Paraná, com 18, estava sofrendo uma injustiça. Jogava o campeonato amador de Sorocaba por um time de fábrica de tecidos. Foi comunicado pelo presidente que não receberia mais nenhuma ajuda de custo. Revoltado, abandonou o time e foi pra casa se queixar com o pai.

A família estava recebendo a visita de um tio, que o convidou para passar uns dias em São Paulo. Ele foi e levou a chuteira. Participou de um jogo com os primos. Foi o melhor e o tio resolveu falar das qualidades de “Ade”, como era chamado a um comprade: o jornalista Aurelio Belotti, de A Gazeta Esportiva. Ele conseguiu um teste de Paraná no Corinthians.

“No coletivo, fiz dupla com Roberto Belangero, que estava voltando de contusão, no time juvenil. Terminou o treino e o Rato disse que tinha gostado e que era para eu voltar. Fui lá, tomei banho,e quando fui arrumar as coisas, minha chuteira tinha sumido. Reclamei com o roupeiro, ele procurou e não achou. Tinham roubado. Fui embora e não voltei mais”.

O Rato é José Casteli, então responsável pelas peneiras do clube. Quatro anos depois, ele aprovou um garoto de 17 anos que havia sido reprovado no Palmeiras: Roberto Rivellino.

Paraná voltou para o time da fábrica de tecidos, por pouco tempo. Foi para o São Bento e iniciou a transição para a ponta-esquerda. O São Bento tinha bom time, ele se destacou e as ofertas apareceram. A Ferroviária e o Santos queriam. Ele foi para o São Paulo. Estreou em 7 de março de 1965. E em 30 de junho, estava na seleção. Uma ascensão extraordinária, que não o surpreendeu. “O João Mendonça Falcão (presidente da Federação Paulista de Futebol), disse que eu iria ser convocado em breve. Já estava esperando”.

Os primeiros jogos foram em uma excursão à Europa. O rival era Rinaldo, do Palmeiras. No ano seguinte, estavam os dois novamente e mais Edu, a grande revelação do Santos, com 16 anos. No último jogo treino, antes da Copa, ele se machucou. “Fiz uma tabela com o Tostão, a bola bateu na perna dele e sobrou na frente. Entrei batendo, o cara calçou minha perna e levei 12 pontos na canela.”

O corte era uma possibilidade grande que não se concretizou. Rinaldo ficou fora. Amarildo, o herói da Copa passada, contundido, também ficou fora. E o Brasil foi com Edu, 16 anos, e Paraná, 12 pontos na canela. Vicente Feola escalou Jairzinho, deslocado contra a Bulgária (2×0) e Hungria (1×3). A situação era desesperadora para o último jogo. O Brasil precisava vencer Portugal.

“Aquela seleção era muito desorganizada. Cortaram jogadores como Carlos Alberto Torres para levar o Fidélis. O Servílio era o melhor atacante e não foi. E o Feola confessou para a gente que tinha interferência dos cariocas na escalação”, lembra Paraná.

E ele recorda a conversa com o treinador, antes do último jogo, contra Portugal. “Ele disse que tinha jogador pedindo para não jogar porque não acreditava mais que dava para reverter. Disse que nem tinha onze para escalar. O Pelé falou que ia machucado mesmo. E eu disse que ia também. O Mário Américo (massagista) disse que não dava para jogar com pontos e eu mandei ele fazer uma proteção. Na primeira bola dividida, me acertaram os pontos. Pegaram o Pelé também. Eles sabiam tudo do nosso time. O Oto Glória (brasileiro que treinava Portugal) tinha visto nossos jogos e sabia das falhas e das contusões. Perdemos por 3 x 1 e fomos eliminados”.

Foi a última partida de Paraná com a seleção brasileira. E ele tem certeza que não foi por falta de futebol, mas sim por brigar com dois desafetos: o jornalista carioca Oldemário Touguinhó e Carlos Nascimento, supervisor da seleção.

Eram tempos diferentes. Os jogadores atuavam no Brasil e havia uma rivalidade imensa entre paulistas e cariocas. Na Copa de 66, havia dez de cada estado e a conta era fechada com o mineiro Tostão e o gaúcho Alcindo. Os jornalistas lutavam por jogadores de seu estado e Oldemário, do Jornal do Brasil, era uma voz forte e influente. E ele não queria Paraná.

“Ele criticava até os treinos físicos que eu fazia. E eu era de puxar a fila. Pedi para o Bellini falar com ele e ele respondeu que não gostava de mim e que iria me criticar sempre”.

Paraná diz que Oldemário foi o responsável pela convocação de Amarildo que estava na Itália,. Já havia 44 nomes e ele chegou. Um a mais na briga pela vaga, apesar de não ser ponta-esquerda. Contundido, foi cortado

Terminado o jogo contra Portugal, o último, Paraná teve um encontro cara a cara com Oldemário. “Estava descendo do ônibus no hotel e ele veio falar comigo. Me deu parabéns e disse que eu tinha sido o melhor do Brasil. Estava com muita coisa acumulada e soltei-lhe um murro na cara. Então, veio o Carlos Nascimento e disse ‘como é que você foi fazer isso?’, aí eu dei um safanão nele também e falei que para jogar nessa merda, preferia jogar no Santos de Arvore Grande, meu time amador de Sorocaba”.

E jogou mesmo. Contra um time da PM. Carlos Nascimento ficou sabendo e mandou avisar que ele nunca mais seria chamado. E não foi.

“Perdi a Copa de 70. Eu era o melhor e seria titular do time, sem dúvida”.

Que marra, Paraná? Você seria titular no lugar do Rivellino.

“Seria sim, estava jogando muito. Pode ter certeza”.

A briga com Telê

Em 1970 não teve Copa, mas teve o título paulista. O primeiro pelo São Paulo. O segundo veio no ano seguinte. E foi o início do fim de Paraná no São Paulo. Coincidiu com a chegada de Telê. “Ele pediu que eu jogasse mais na frente, como um ponta driblador. Eu respondi que não aceitava e que ele tinha sido famoso porque jogava como eu, fechando o meio, quando começou no Fluminense. Não adiantou. Ele contratou o Piau e o Ratinho e fui perdendo espaço”.

Paraná saiu em 1973. Rodou por vários estados, fez o primeiro gol no Estádio do Café, em Londrina e em 1980, parou. Fez faculdade de Educação Física e Administração e voltou para Sorocaba, com a mulher, dona Dulce, com quem se casou em 1968. Ela morreu há nove anos. E tudo começou com um problema com a contadora.

Descobridor de talento que viveu tragédia

Paraná ainda estaria ligado ao São Paulo uma vez mais. De maneira muito menos intensa do que poderia ter sido. Um acidente de carro matou o goleiro Alexandre, que ele levou de Sorocaba para o Morumbi.

Depoimentos sobre Paraná

Fui seu contemporâneo e adversário. Tecnicamente, não era um fenômeno, mas tinha excelente preparo físico e chegava com facilidade no fundo do campo e cruzava com perfeição. Djalma Santos, o excepcional lateral direito, disse uma vez que havia três pontas que lhe davam trabalho. Canhoteiro, pelo fino futebol, Pepe porque tinha uma canhota violentíssima e Paraná que não o deixava apoiar nunca e as vezes entrava muito firme nas divididas. Era um jogador utilíssimo com quem os companheiros sempre podiam contar

Pepe

Foi uma grande honra jogar a Copa com ele. Era um jogador muito valente, não tinha medo de ninguém, não se impressionava com nome. Atacava e defendia. Um grande cara

Jairzinho

Paraná era um jogador tático. Tinha habilidade, mas o principal era a forma como se portava em campo. Ele ajudava o meio, fazia recomposição, era incansável. Seu esforço fez com que deixasse um gênio como Edu na reserva em 66. Eu posso comparar o Paraná com o Romero, do Corinthians.