“Sabíamos mais dos gols do Ceni do que das defesas”, diz ídolo do Liverpool

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Jamie Carragher no estúdios da Sky Sports, em Londres

Caio Carrieri/Colaboração para o UOLJamie Carragher no estúdios da Sky Sports, em Londres

Jamie Carragher levanta os braços e coloca as mãos na cabeça, incrédulo. Na intermediária do então Estádio Internacional de Yokohama (JAP), ele assiste com visão privilegiada ao lance inesquecível para os são-paulinos: Steven Gerrard, capitão do Liverpool, cobra falta com extrema categoria no ângulo esquerdo de Rogério Ceni, que se estende e espalma, com a mão esquerda, uma bola aparentemente indefensável.

Treze anos depois, Carragher recebe a reportagem do UOL Esporte e, em poucos minutos de conversa, lembra espontaneamente da final do Mundial de Clubes, que teve Mineiro como herói e cuja efeméride é lembrada desde então pelos tricolores a cada 18 dezembro. “Nós jogamos uma vez contra um time brasileiro, o São Paulo, perdemos por 1 a 0, e eles tinham aquele goleiro famoso, o Ceni, que marcou muitos gols ao longo da carreira. Foi uma grande frustração perder aquele jogo”, diz, ao pronunciar o nome de um dos algozes como “Tcheni”.

Segundo jogador com mais partidas (737) na história do Liverpool, à frente até mesmo de Gerrard (710), Carragher, 40 anos, é um dos principais comentaristas da Inglaterra. Após defender apenas os Reds na carreira que durou 17 anos, o ex-zagueiro se aposentou em 2013 e logo foi contratado pela Sky Sports, que domina o mercado britânico. No camarim da emissora, em Londres, ele concedeu a entrevista a seguir. Além do confronto com o São Paulo, ele abordou outros temas, como o título heroico da Liga dos Campeões em 2005, em Istambul (TUR), onde o Liverpool levantou a quinta taça europeia, depois de ir para o intervalo com desvantagem de 3 a 0 para o Milan de Kaká, Maldini e cia.

Jogador de um clube só

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“Para ser sincero, sempre quis jogar apenas por um time, mas não é algo fácil de conseguir, porque muitos jogadores querem ir para clubes maiores. Tive a sorte de começar minha carreira em um clube vencedor e um dos maiores da Inglaterra e da Europa. Era também um garoto local e nunca quis me mudar. Vi grandes jogadores anteriores a mim como Paolo Maldini e Franco Baresi que também jogaram sempre pelo Milan. O Raúl era outro exemplo, e quando ele saiu do Real Madrid para o Schalke 04 pareceu estranho para mim. Sempre quis jogar no Liverpool, seja como titular ou saindo do banco, só que no fim da minha carreira eu já não estava jogando tanto. Naquele momento não fazia sentido eu sair para jogar apenas mais um ano. Sou feliz e orgulhoso da minha carreira”.

Presenciou a transformação dramática do futebol inglês, onde o álcool era comum

“Tive uma experiência brilhante, de muitas mudanças. A chegada do Gérard Houllier (em 1998) era algo necessário no Liverpool e seguiu o que já tinha acontecido no Arsenal com o Arsène Wenger, outro francês. Os mais velhos precisam ser a referência em relação à preparação, recuperação e os cuidados extracampo, como a questão do álcool. Quando comecei no Liverpool, havia essa cultura do álcool, mas o Gérard Houllier baniu isso imediatamente do lounge dos jogadores, uma área do estádio onde os atletas encontravam familiares e amigos logo após o jogo e bebiam um pouco. Outra medida do Houllier também foi proibir celulares no centro de treinamento para incentivar o relacionamento entre o elenco”.AFP

Ex-torcedor do arquirrival Everton

“Foi uma mudança complicada, mas ganhei a oportunidade aos 9 anos de ir para o Liverpool, que era o melhor time do país. É difícil dizer não. Queria ser jogador profissional, independentemente por qual clube eu fosse jogar. Continuei torcendo para o Everton até meus 17 anos, quando acabei a escola e passei a frequentar o Liverpool todos os dias. Sou fanático torcedor do Liverpool, mas também era pelo Everton. Assistia ao Everton em todos os lugares, em partidas fora de casa ou fora”.

A cidade de Liverpool e a obsessão pelo futebol

“A cidade tem mais troféus do que qualquer outra no país. As pessoas realmente vivem para o futebol. Não é o lugar mais rico da Inglaterra, mas os locais se dedicam ao máximo ao trabalho para, no fim de semana, dependendo dos resultados de Liverpool e Everton, se divertir. A rivalidade é gigantesca, com torcedores extremamente apaixonados. Sem futebol, só existiria a bebida (risos)”.

Convivência com brasileiros

“São caras cheios de vida, sempre com o sorriso no rosto e se divertindo. Lucas Leiva foi quem eu tive a chance de conhecer melhor por termos convivido por mais tempo. Excelente pessoa, de grande caráter. Coutinho, por exemplo, marcou o gol da vitória no meu último jogo da carreira, quando vencemos o Queens Park Rangers em Anfield. Nunca pensei que ele fosse jogar pelo Barcelona, mas isso mostra a qualidade que tem. Isso aconteceu também pelas oportunidades que o Liverpool lhe deu, com a estrutura, os treinadores. Penso que o Brendan Rodgers foi fundamental para o desenvolvimento do Coutinho, o que depois Jürgen Klopp teve a capacidade de dar continuidade. E agora ele está talvez onde a maioria dos brasileiros sonham jogar, seja no Barcelona ou no Real Madrid. O Doni também é uma pessoa sensacional, mas infelizmente teve um problema de saúde”.

Como marcaria Neymar?

“Não mudaria meu estilo de jogo, que em muitas vezes me ajudou e em outras minhas tentativas de desarme me causaram alguns problemas. Óbvio que o Neymar não teve uma boa Copa do Mundo, mas é um jogador fantástico, um dos poucos que conseguem fazer o que ele faz em velocidade. Ele pode estar parado e num piscar de olhos já chegar em extrema velocidade lá na frente. Me pegou de surpresa quando ele foi para o Paris Saint-Germain. Penso que ele deveria ter permanecido no Barcelona. Entendo as razões, como a ideia de ser o protagonista, o que provavelmente não aconteceria ao lado do Messi, mas o trio Neymar-Suárez-Messi poderia facilmente se tornar o melhor de todos os tempos. No fim da carreira ele pode se arrepender dessa decisão”.  

Mundial contra o São Paulo

“Lembro que tivemos três gols anulados, e no gol que levamos Sami Hypia tentou fazer a linha de impedimento e não deu certo. Aquele foi o primeiro gol que tínhamos tomado em 11 partidas. Não lembro muito de como foi o jogo em si, mas foi, sim, uma grande decepção não conquistar aquele troféu. Nós sabemos que é algo muito maior na América do Sul do que na Europa, mas é uma decepção mesmo assim. Teria sido bacana conquistar o troféu de campeão mundial. Um confronto muito difícil e sabíamos que provavelmente quem marcasse primeiro seria o campeão”.Issei Kato/Reuters

Pegos de surpresa pela qualidade do São Paulo?

“Quando você assiste a vídeos do futebol jogado no Brasil, dá para ver que existe muita competitividade, mas às vezes na Inglaterra há a ideia de que existem só dribles. Acredito que na Inglaterra os clubes argentinos, Boca Juniors e River Plate, são mais conhecidos, e no caso do Brasil a seleção é muito mais famosa do que os clubes. Tínhamos a noção que o jogo contra o São Paulo seria de bastante contato físico. Não à toa o Brasil tem e teve ótimos zagueiros”.

A fama de Rogério Ceni

“Nós não conhecemos tão bem o futebol brasileiro, mas ele era uma figura muito famosa pelos gols. Talvez nós sabíamos mais dos gols que ele havia marcado de falta e pênalti do que as defesas. Se foi para perder, bom que tenha sido para o São Paulo e para o Ceni”.

O milagre de Istambul

“Há jogos na história do futebol que todo mundo lembra. Não esqueço a final da Copa de 70 entre Brasil e Itália, mesmo que eu nem tivesse nascido ainda. Pelé, Gerson, Tostão, Rivelino. Todo mundo sabe. Acho que Istambul também é inesquecível nesse sentido. Foi um jogo muito estranho, por tudo o que aconteceu, em uma final de Liga dos Campeões. Tive a sorte de fazer parte de algo que será lembrado por muitos anos no futebol. Fiz um desarme no Kaká no fim do jogo que eu nem sabia em quem eu estava dando carrinho de tanto cansado que sentia. E que atuação impressionante teve o Kaká, principalmente no primeiro tempo”.

O fator decisivo para a reviravolta

“Acredito que o gol do Smicer, o do 3 a 2, aconteceu muito rápido depois do Gerrard marcar o primeiro de cabeça, e esses gols um atrás do outro deixaram o Milan nervoso. A partir dali passamos a acreditar que conseguiríamos voltar ao jogo e, quem sabe, ser campeões. Schevchenko quase tinha feito 4 a 0 em uma cobrança de falta. Mas talvez o principal foi conseguir o 3 a 2, quando passamos acreditar que era possível reverter”.

A idolatria por Firmino no Liverpool

“É um jogador excepcional, provavelmente o predileto do Klopp. Toda vez que marca um gol, Klopp comemora como se fosse o gol de um filho. A dedicação sem a bola, mesmo como atacante, é realmente impressionante. Ele faz os companheiros jogarem bem. Mohamed Salah e Sadio Mané vão melhor com Firmino em campo. Salah ganhou vários prêmios na temporada passada, mas Firmino era o meu favorito”.

Richarlison no Everton

“Gosta muito de jogar entre as linhas, talvez seja mais enérgico nesse sentido do que o Firmino. Vejo Richarlison como a contratação da temporada na Premier League, ou pelo menos o melhor reforço do Everton. Talvez a grande diferença entre eles é Firmino buscar mais a bola, enquanto Richarlison prefere jogar nas costas da defesa”.

O impacto de Alisson no Liverpool

“A defesa do Liverpool melhorou muito, então ele não tem sido acionado com tanta frequência assim. Mas vai muito bem quando precisa. Ele vai usar mais os pés do que as mãos, o que faz meu coração acelerar, porque Alisson às vezes é tranquilo até demais com a bola nos pés. Quem sabe ele pode passar a bola um pouco mais rápido, o que vai me deixar mais tranquilo (risos)”.

A volta do Liverpool candidato a títulos

“Na minha época nós precisávamos de três ou quatro anos para construirmos um bom time e depois outro ciclo na sequência. Jürgen Klopp trouxe essa consistência ao clube, fez em poucos anos um trabalho que poderia levar anos nas mãos de outro técnico. Não vejo ninguém melhor do que ele para o Liverpool, um grande treinador, um dos melhores do mundo. Possivelmente a esperança para o Liverpool é que Guardiola não continue por muito tempo no Manchester City”.

Premier League ainda não teve um brasileiro como protagonista indiscutível

Nunca tinha pensado nisso, mas vale a reflexão, porque pensamos que o Brasil é o país que já produziu o melhor futebol, com grandes jogadores. Sempre penso que os melhores brasileiros atuam por Barcelona e Real Madrid, como Rivaldo, Ronaldo, Ronaldinho, Neymar. A cultura de historicamente pensar mais na Espanha do que na Inglaterra pode ser uma explicação.

Oscilações de Gabriel Jesus

“Quando ele chegou, parecia que o Guardiola o preferia ao Agüero. Acredito que a presença do Jesus fez o Agüero evoluir. No City, Agüero é uma lenda, artilheiro, um jogador fantástico, e mesmo assim melhorou com Pep em termos de marcação, fechamento de espaços, movimentação sem a bola”.

Mourinho coadjuvante?

“É muito difícil ser tão vencedor por tanto tempo no mais alto nível em qualquer profissão. E ele nunca fez uma pausa da maneira que o Guardiola teve um ano sabático em Nova Iorque, por exemplo. E todo mundo espera que o Mourinho vença tudo. Quando ele se aposentar, ele vai ter feito um trabalho inacreditável”.

Nova geração inglesa semifinalista na Rússia. O que acontecia com o time de Gerrard, Lampard e cia?

“A expectativa não é tão grande agora como era antes, e isso diminui um pouco a pressão. Existia o peso de ter de ganhar uma Copa do Mundo. Perdemos nos pênaltis algumas vezes, o que pode acontecer por uma margem pequena de erro. A geração atual parece muito mais um time do que na minha época, quando aparecíamos mais individualmente. Pensávamos muito nos clubes, na rivalidade da Premier League e Liga dos Campeões entre Manchester United, Chelsea e Liverpool. Os jogadores atuais, embora também sejam de clubes diferentes, parecem mais amigáveis uns com os outros, e nós nos relacionávamos muito mais com os companheiros de clube”.