Laudo Natel virou ícone do São Paulo ao erguer o Morumbi, com jogadores vendendo ingressos de porta em porta

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UOL

Laudo Natel morreu ontem (18) aos 99 anos de idade. Ele presidiu o São Paulo entre 1958 e 1970, período marcado por um jejum de títulos oficiais que durou do primeiro ano de gestão até 1969. Mas isso não impediu que o dirigente se tornasse patrono do clube do Morumbi, considerado por muitos o maior presidente de sua história. O estádio, chamado oficialmente Cícero Pompeu de Toledo, e a epopeia de 18 anos que foi sua construção, estão por trás do status quase lendário de Natel entre são-paulinos.

Por ter ocupado em duas ocasiões o posto de governador do estado de São Paulo, Natel conviveu por décadas com os dedos apontados por torcedores rivais, que o acusavam de ter favorecido o clube tricolor na articulação da doação de um terreno pertencente à Prefeitura para a construção daquele que foi anunciado como o maior estádio particular do mundo. A história, entretanto, não é bem assim.

O terreno onde seria erguida a casa são-paulina foi cedido ao clube em 1952, seis anos antes de Natel ser eleito presidente, e 11 anos antes ser nomeado vice-governador do estado, em 1963 (depois disso, seria o governador em dois mandatos). O dono da maior parte do terreno e autor da doação —o clube comprou áreas adicionais no decorrer dos anos seguintes— era um ente privado: a Imobiliária Aricanduva S.A.

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O que de fato acontecia é que o terreno, embora fosse de propriedade da Aricanduva, estava loteado pela Prefeitura para a construção de um pequeno parque, em uma espécie de plano diretor da época. A área era repleta de vegetação e pouco urbanizada —a construção da arena foi de fato uma mudança de finalidade, mas que só viria a ser contestada décadas depois.

Venda do Canindé para mudar um São Paulo “pobre” de patamar

A realidade do São Paulo no início da década de 50 era bem diferente da atual, e ainda mais distante da que levou o clube a se auto-intitular soberano em meados dos anos 2000. Dificuldades financeiras eram constantes, e o principal ativo era um terreno adquirido na década anterior: o Canindé, que hoje pertence à Portuguesa.

Homem de finanças, Natel foi funcionário do Banco Noroeste e do Banco Brasileiro de Descontos, que se tornaria o Bradesco, e, no São Paulo, um dos apoiadores de uma ideia ousada: vender o Canindé para sanar as finanças do clube. A ideia se concretizou, e Wadih Sadi, conselheiro, participou da compra. Em 1956, o terreno passaria a ser da Portuguesa. Parte dos valores da venda foi utilizada em materiais de construção para o Morumbi.

A pedra fundamental do estádio veio ainda em 1952, mas, pelas limitações orçamentárias, as obras transcorreram de forma lenta até 1958, quando Natel assumiu a presidência do clube. O Morumbi que foi inaugurado em 1960 era, na verdade, ainda um esqueleto do gigante estádio. Sua construção foi uma epopeia e, àquela época, nem mesmo havia chegado a sua metade.

Arquivo Histórico/São Paulo FC

Década de jejum de títulos, jogadores de porta em porta e parafusos de graça

Sem dinheiro, Natel precisou recorrer a métodos inusitados para concluir a faraônica obra iniciada em 1952. Enquanto ainda era jogador profissional e ídolo são-paulino, o goleiro José Poy ia de porta em porta negociar a venda de cadeiras cativas no Morumbi —como jogador e, a partir de 1964, como treinador, Poy vendeu, pessoalmente, um número estimado em 8 mil cadeiras.

O próprio Laudo Natel também precisou colocar a mão na massa. Para fixar os assentos dessas cativas e das numeradas no estádio, o presidente atuou como garoto-propaganda da empresa fabricante de pregos e parafusos. Em troca, recebeu algo em torno de 400 mil unidades.

Aos poucos, ao longo de todo seu mandato, Natel viu o estádio se aproximar de sua conclusão. O futebol, entretanto, sofreu com o foco intenso do São Paulo na edificação. Dos 18 anos de obra, foram 12 sem títulos oficiais, 11 deles na gestão de Natel. O presidente deixou o cargo em 1970, mas com estádio concluído.

Cícero Pompeu de Toledo era o presidente durante a idealização do Morumbi. Permaneceu no cargo até precisar ser afastado por problemas de saúde, e viu a casa são-paulina ser batizada com seu nome em 1956 —ele morreria em 1959. Natel, por sua vez, deu nome ao centro de formação de jogadores de Cotia, inaugurado em 2005.Rubens Chiri /SaoPauloFC.net

Rubens Chiri /SaoPauloFC.net

Prefeitura tentou retomar terreno, mas foi derrotada na Justiça

A Prefeitura de São Paulo tentou, em 2016, retomar o terreno do Morumbi através de uma ação judicial. O argumento era de que a área estava destinada à construção de um parque. Ao abrigar um estádio, houve, então, um desvio da finalidade estabelecida pelo município na década de 50.

O São Paulo foi vitorioso em duas instâncias. A última decisão, do Tribunal de Justiça de São Paulo, é de 2019, e afirma que qualquer direito que a Prefeitura pudesse vir a ter já é alvo de prescrição, uma vez que quase 70 anos se passaram desde a doação do terreno e o início das obras.

A decisão, proferida por desembargadores da 6ª Câmara, também confirma que o doador do terreno era um ente privado, e afirma que ele nunca teria pertencido efetivamente à Prefeitura. Ainda que fosse, o prazo para uma eventual reclamação é retomada seria de 20 anos, e não houve nenhuma manifestação nesse sentido entre 1952 e 2016.Rubens Chiri/saopaulofc.net

Rubens Chiri/saopaulofc.net

“Natel foi um dos responsáveis pela grandeza do São Paulo”

Por Menon, colunista do UOL

A morte de Laudo Natel deixa o São Paulo órfão de grandes dirigentes. Ele, Cícero Pompeu de Toledo e Juvenal Juvêncio foram os três grandes responsáveis pela grandeza do São Paulo.

Cícero Pompeu de Toledo foi o presidente que sonhou com a construção de um grande estádio. Laudo Natel foi o escolhido para colocar o sonho em pé. Escolha mais acertada, impossível. Laudo era um homem pragmático, diretor do Bradesco com apenas 30 anos de idade. E foi ousado. Vendeu um sonho. Vendeu cativas, títulos patrimoniais, campanha para conseguir cimento, parcerias com empresas.

As obras começaram em 1952 e terminaram em 1970. No ano seguinte, Laudo foi eleito governador de São Paulo, por via indireta. Antes, por oito meses, havia completado o mandato de Adhemar de Barros, cassado pela Ditadura. O estádio havia sido inaugurado em 1960. As datas mostram que Laudo, como governador, não ajudou na construção do estádio, como se diz.

O São Paulo tem todos os motivos para chorar pela partida de seu patrono. É o fim concreto de uma era, cujos valores já haviam terminado. O São Paulo de hoje não tem sonhos. E, se tiver, não tem quem os realize. Mal paga suas dívidas.Arquivo Histórico/São Paulo FC

Arquivo Histórico/São Paulo FC

Trocar o sonho do Morumbi pelo Pacaembu? Não cabia

Depoimento de Paula e Maurício Natel, neta e filho de Laudo Natal, especialmente para o UOL Esporte:

Impossível falar de Laudo Natel sem falar de São Paulo Futebol Clube, assim como é impossível mencionar o SPFC sem lembrar de Laudo Natel. Entrou no quadro do SPFC em 1946. Foi diretor de finanças de 1952 até 1958, quando foi eleito presidente da diretoria, cargo que ocupou até 1970.

Quando assumiu o cargo de diretor financeiro, tinha compromisso com o presidente Cicero Pompeu de Toledo de ficar apenas por uma gestão, até sanar as dívidas e superar a difícil situação financeira que vivia o clube naquele momento. Ficou no cargo por seis anos e o sucesso no equilíbrio das contas o levou para assumir a presidência do clube em 1958.

Participou da pedra fundamental do lançamento do estádio. Foram 18 anos de luta para construção até ser inaugurado em 1970. Foi um período muito difícil. Como as finanças eram apertadas e o investimento no futebol ficava reduzido quando o SPFC perdia para um rival próximo, a reclamação era geral.

Chegaram a sugerir a troca do estádio em construção pelo Pacaembu — Paulo Machado de Carvalho. A resposta foi simples: ‘O sonho dos são-paulinos não caberia no Pacaembu’. Apesar dos questionamentos, decidiu seguir em frente. Em 1970, conseguiram entregar o estádio sem dívida alguma. Segundo ele próprio: ‘um milagre’.

A área ao redor do estádio era um deserto. Foi o primeiro tijolo colocado no bairro do Morumbi. Uma área que foi doada pela imobiliária Aricanduva.

Com toda essa trajetória e ligação com o clube, não é difícil de entender a paixão que todos da família têm pelo nosso grandioso Tricolor. Todos descendentes vestiram como primeira roupa na maternidade o uniforme vermelho, branco e preto. Não me lembro de um almoço de domingo sem conversarmos de futebol e sobre o que seria melhor para o clube.

Temos muito orgulho de sua trajetória, caráter e realizações. Foi sem dúvida um homem à frente de seu tempo, cuja credibilidade possibilitou apoio de empresas e colaboradores que transformou o clube na sua época! Deixa saudades, mas, acima de tudo, um legado que jamais será esquecido por todos.Ricardo Matsukawa/UOL

Ricardo Matsukawa/UOL

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