GloboEsporte
Felipe Ruiz, Guilherme Pereira e Levi Guimarães
Volante do Tricolor e ator têm conversa esclarecedora sobre o tema; assista.
Volante do São Paulo, Danilo das Neves Pinheiro, o Tchê Tchê, foi um dos jogadores do futebol brasileiro que se posicionou nas últimas semanas sobre os atos antirracistas. Após a morte de George Floyd, nos Estados Unidos, por um policial, manifestações se multiplicaram pelo Brasil e pelo mundo.
Engajado nas causas sociais e dono de duas tatuagens de símbolos da luta contra o racismo, Tchê Tchê falou sobre o assunto com o ator Lázaro Ramos em uma conversa promovida pela Globo.
Ambos contam suas angústias e situações de preconceito que já enfrentaram. Tchê Tchê ainda fala por que, mesmo sendo jogador de futebol e bem-sucedido, escolheu se posicionar, diferente da grande maioria dos atletas.
– Eu falo porque é a minha realidade. Quando criança, eu tinha sonhos. Eu me espelhava em pessoas: tanto no esporte, como em atores igual a você, no Rap. Eu acho que o Rap me representa muito. As letras conversam muito comigo. Eu acho que a gente não pode se calar. É a realidade que a gente vive. Eu vim de uma origem muito humilde, eu sei o que é ser negro. Eu sei a dificuldade que é – afirmou Tchê Tchê.
Na semana passada, o volante do Tricolor esteve presente em uma manifestação antirracista e antifascista que aconteceu em São Paulo. Ele estava ao lado da esposa, que também participa desse bate-papo quando Lázaro Ramos chama a sua esposa Taís Araújo.
Tchê Tchê, do São Paulo, vai à manifestação contra o racismo — Foto: Reprodução Instagram
Leia abaixo a conversa entre Lázaro Ramos e Tchê Tchê:
Lázaro Ramos: Ô Danilo, rapaz, você não sabe a alegria que eu tô de falar com você, cara, de verdade.
Tchê Tchê: – Imagina eu então, nem dormi direito…
Eu também não dormi direito, cara. Será que foi por isso?
– Acho que não, você está mais acostumado.
Estou não, principalmente porque em um encontro desses acho que a gente em uma outra época, já está desde janeiro marcado pra conversar, acho que a gente estaria falando sobre outras coisas. E eu acho que a gente falar sobre preconceito acaba virando uma marca, como uma tatuagem, com coisas boas e ruins. Então acho que é um desafio fazer desse papo uma coisa útil e acolhedora para as pessoas. Para a gente também não se perder, aí parece que só isso define nossos encontros, né?
–Sim, é verdade, concordo.
Eu estava pensando como é que começa esse papo e vou mandar logo sincero. Não sei a tua geração, estou com 41 anos agora… Você está com 27, né?
– Estou com 27.
Encontro histórico: Tchê Tchê e a esposa conversam com Taís Araújo e Lázaro Ramos — Foto: Reprodução
Quando era pequeno, quando eu era adolescente, meu sonho nunca foi virar uma voz que fala contra o preconceito, contra o racismo. Eu sonhava com tudo, menos isso. Meu sonho era ser ator, um dia escutarem a minha voz como artista, reconhecerem em mim o meu talento. Na minha casa não se falava sobre esse assunto, não existia rede social na minha época e hoje em dia eu falo, mas não é nem uma fala prazerosa. Acho que tem outras coisas, né? Mas pela situação que a gente vive e pelo privilégio de a gente ter uma voz, eu falo. Porque eu sei que pode tocar o coração das pessoas. Não sei se com você foi a mesma coisa. Porque você com 27 anos talvez tenha experimentado outras coisas sobre esse assunto…
– Bom, Lázaro, a gente tem uma coisa em comum, eu falo como negros que vêm da periferia, assim como nós, eu acho que muitas vezes o direito de sonhar nos é tirado. Quando a gente é criança, o que a gente planeja, a gente tem vários sonhos… Mas ao meu ver muitas vezes o que nos é vendido é que a gente não tem essa condição, a gente não vai conseguir chegar lá, alcançar os lugares altos. Hoje em dia a gente tem o privilégio com certeza de poder ser uma voz no nosso país. Ser alguém em quem as pessoas se espelham, e assim como eu falei que você é uma pessoa que é uma referência como um cara negro bem-sucedido, que é um casal de negros bem-sucedidos. É uma coisa que é difícil a gente ver, então você é uma referência para mim e para minha esposa também. A gente fica muito feliz de eu estar podendo bater esse papo, e claro, como eu disse, para mim é mais uma aula aprender com você. É um privilégio.
Não tem aula nenhuma, eu acho que você que está dando vários exemplos, porque geralmente quando a gente fica melhor de vida, quando a gente ascende, às vezes a gente esquece das nossas origens. E eu vejo sempre nas suas entrevistas você fazendo referência às suas origens e isso é muito bonito, cara, isso é exemplo. Exemplar…
– Uma coisa que eu fico triste assim é quando eu volto aonde eu nasci, onde eu cresci, Guaianazes, eu vejo, sabe… Se passaram desde que eu saí de lá, não sei se cinco ou seis anos. Na real eu saí de casa quando eu tinha os meus 14 anos a primeira vez em busca de um sonho, que muitas vezes para mim foi muito difícil. Eu pensei em desistir diversas vezes, e o que me entristece hoje em dia é voltar na minha quebrada e ver que muitas vezes as pessoas não tiveram a oportunidade de poder sair dali. O que me entristece é que nós, como negros, muitas vezes não podemos, não temos a oportunidade de sonhar com algo melhor: uma casa própria, educação melhor. Eu volto ali e vejo que as pessoas estão do mesmo jeito, que as escolas estão do mesmo jeito. Eu volto e vejo no lugar onde eu estudei. Eu falo: “É inadmissível isso”. Porque faz tantos anos que já terminei a escola, que eu passei por lá e nada mudou. A educação pública não melhorou, então isso é muito triste.
Lázaro Ramos e Tchê Tchê têm conversa emocionante — Foto: TV Globo
Quando você fala assim, desculpa, vou ter que mudar de assunto. Porque eu sou curioso mesmo. O que você acha que te diferenciou? É a sua família? Me fala um pouquinho da sua família e o que você lembra das suas primeiras lembranças…
– Eu me sinto um cara privilegiado em vários aspectos. Na periferia, é muito difícil você ter uma base familiar. Você ter o pai e a mãe dentro de casa, e eu cresci assim. Conheço poucas pessoas, poucos amigos que têm uma família, uma estrutura, uma base. Nunca passei fome, sempre deixei claro em vários lugares isso. Mas era tudo muito bem regrado, tinha suas regras. Não tinha muitas regalias, mas meu pai, graças a Deus, nunca deixou nada faltar nada dentro de casa.
– A minha mãe quando eu nasci parou de trabalhar, porque dedicou a vida aos meus sonhos para cuidar de casa e da minha irmã. A gente ia andando para diversos lugares. Ou escolhia comer, ou pegar a condução. Aí a gente escolhia comer e voltar andando. Então eu me vejo privilegiado, minha base familiar me ajudou muito. Me vejo como um cara com uma perseverança enorme também. Porque na minha infância eu tomei diversos nãos: “Você é muito pequeno”, “você é muito magro”… O pessoal tem a mania de ter aquele estereótipo de um padrão de beleza, um padrão de atleta, um padrão de ator… Muitas vezes a gente tem que seguir firme para a gente quebrar essas barreiras e alcançar lugares como hoje eu e você alcançamos e podermos ser uma voz no Brasil.
Estou emocionado
– Eu também, mano, acordei cedo ensaiando.
Personalidades do esporte brasileiro debatem sobre o assassinato de George Floyd e relembram casos de racismo ocorridos por aqui
Porque é difícil às vezes falar sobre esses assuntos, né? Inclusive ter coragem de falar sobre esses assuntos. Você tem muita consciência, a sua fala é muito elaborada. A gente sabe que nem todos os jogadores de futebol, assim como nem todos os atores, têm essa possibilidade, essa coragem, esse conhecimento para falar sobre esses assuntos. Eu acho que tem custo às vezes, né? Mas porque antigamente nem se falava sobre isso. Às vezes se sofria perseguição de torcida, perseguição de dirigentes… Era um grande tabu falar sobre isso. Você hoje parece que experimenta outra coisa. Eu estou certo?
– Mais ou menos, eu diria. Acho que o Brasil ainda sofre muitas represálias e é muito difícil às vezes você se posicionar contra determinados assuntos que, na maioria das vezes, outras pessoas não estão de acordo. Aí você vai ser muito julgado. Hoje em dia existem as redes sociais, que praticamente mandam em tudo, né? Porque se você comete algum deslize, você já vai parar nas redes sociais. Tanto para ser um exemplo bom, como exemplo ruim.
– Eu lembro do Sócrates, que foi um dos grandes líderes na história da democracia, lutando contra isso. Então eu creio que nessa época era mais difícil do que é hoje. Acho que pouco a pouco as pessoas, o Brasil em si, vão dando passos, não largos, mas pouco a pouco acho que o Brasil está indo na direção certa.
E por que você ainda fala?
– (Risos) Eu falo porque é a minha realidade. Quando criança, eu tinha sonhos. Eu me espelhava em pessoas: tanto no esporte, como em atores igual a você, no Rap. Eu acho que o Rap me representa muito. As letras conversam muito comigo. Eu acho que a gente não pode se calar. É a realidade que a gente vive. Eu vim de uma origem muito humilde, eu sei o que é ser negro. Eu sei a dificuldade que é. Eu sei o que é você entrar no no shopping e as pessoas te olharem de uma maneira diferente: “O que que ele está fazendo aqui?”. Já aconteceu situação de eu estar dentro do hospital, pessoas virem tirar foto comigo, e depois uma senhora veio perguntar: “Você é jogador?”. Sendo julgado, sabe? Eu não posso ser outra coisa? Então eu não posso me calar. Eu me vejo no direito de passar um bom exemplo para as crianças. De onde eu vim, eu sei que tem pessoas que olham para mim e esperam boas atitudes. Então é isso que eu tenho que passar.
Tchê Tchê durante treino do São Paulo antes da pausa no futebol — Foto: Rubens Chiri / saopaulofc.net
É isso aí (Lázaro se emociona e chora)…
–Eu vi muitas entrevistas suas também. Eu me vejo muito… Se você está emocionado, eu também estou.
Eu estou, porque não é todo dia que eu consigo falar com esse sorriso que você estava falando aí não. Às vezes dói. Hoje, na altura dos meus 41 anos, tem dias que eu estou muito desesperançoso. Eu até escrevi uma coisa na rede social falando que desde que eu sou criança eu ouço falar que o Brasil é o país do futuro. A gente vai melhorar… Claro que várias coisas melhoraram, claro que várias coisas mudaram, mas de vez em quando vem umas coisas que dão uma rasteira na gente, né? Aí você fala assim: “Pô como é que segue em frente? O que é que fala?”. E você tem uma fala que você está com esse sorriso aí e acolhe a gente. A gente consegue te ouvir, te escutar. Aí vai dando uma fé, a gente vai entendendo que a gente não está sozinho. Vendo que as pessoas estão entendendo as coisas, que aos pouquinhos a gente está conseguindo tocar o coração das pessoas. E aí a gente fica tentando encontrar outras alternativas. Isso que eu estou achando bonito aqui. A gente não tem conseguido caminhar junto, a gente está vendo todo mundo caminhando separado, propagando muito ódio. A gente viu lá nos Estados Unidos o caso do George Floyd, na mesma semana o João Pedro aqui. Só que o João Pedro é mais uma das crianças que estão sendo exterminadas. A gente vem de um histórico já. Ao longo de toda a semana a gente tem que tomar fôlego para seguir, eu não sei como é que você viu essas últimas semanas. Para mim foi esse turbilhão de emoções e eu queria agora, inclusive, ter também uma fala política, porque eu sei que é importante. Tem muita gente ouvindo a gente e que quer que a gente faça e fale alguma coisa certeira. Pra mim agora não é possível, para mim essa semana não é possível. Minha maior certeza, minha maior verdade agora é compartilhar essa emoção torta que me tomou. E aí vem misturado com com desesperança, vem misturado com responsabilidade.
– Sobre os casos do Floyd e do João Pedro, eu posso falar como uma pessoa negra… Vendo aquele vídeo você fica incrédulo. Primeiro a maneira como ele foi abordado, a maneira como ele morreu, depois você vê nas redes sociais pessoas compartilhando o vídeo. Pessoas brincando, porque algumas pessoas fizeram um tipo de desafio, um “challenge” lá, uma coisa totalmente idiota. Prezo por um mundo melhor, mas quando você vê aquilo é algo que nos toca. Aí a gente tem essa falta de esperança, como você disse. A gente fica sem saber para onde vai caminhar realmente o mundo.
Aí a gente sempre vai buscar os que vieram antes, né? Aqueles que sempre vão iluminando a gente. Eu sei que você tem tatuagem do Martin Luther King e do Malcom X. São antigas? São novas? De quando são as duas?
– Essas tatuagens foram quando eu estava na Ucrânia. Eu fiz elas, se eu não me engano, depois de alguma situação que eu acabei sofrendo lá. Foi um país em que a gente viveu muito bem, que a gente evoluiu muito como família. Você lá fora do Brasil vive mais, no sentido familiar. Aqui a gente viaja muito, fica muito tempo fora de casa. Lá os jogos são em um período de uma distância um pouco maior, então você acaba descansando mais e vivendo mais junto com a família. Acho que aconteceu algum fato lá, meio que isolado, e eu acabei depois fazendo essas tatuagens. O Martin para mim é ícone, para mim e para todo negro que tem consciência das coisas que ele fez. A maneira de ele saber conduzir as coisas, o “não à violência” dele.
– E o Malcolm muitas pessoas não concordam com a maneira como ele se expressava. Muitas pessoas achavam que ele era muito agressivo, só que para mim eu vejo de uma outra maneira. Ele consegue conversar com a minha autoestima, você sabe do que eu estou falando. A gente cresce na periferia, quando a gente é uma criança negra sofre algumas coisas na escola. É taxado como feio. Em algum momento você tem que dar as mãos, e uma criança não quer dar a mão pra você. Você sabe do que eu estou falando, que provavelmente você já deve ter passado por isso, assim como eu. Então acho que o Martin tem um lado muito que toca consciência, que é muito amoroso e “não à violência”, e o Malcolm é uma pessoa que consegue conversar comigo sobre a minha autoestima. Me encoraja. É aquela coisa de “vamos lá que você é forte, se acontecer alguma coisa passa por cima disso”. E está pronto para o próximo dia.
Tchê Tchê e as tatuagens de Malcolm X e Martin Luther King — Foto: Reprodução / TV Globo
Você sabe que eu estou fazendo o Luther King há 5 anos no teatro. Eu e a Taís, a gente faz uma peça chamada “Topo da Montanha”, que é o nome do último discurso dele, que aliás é um discurso lindo: fala sobre fé, sobre esperança. Quando eu comecei a ler a biografia dele, eu te confesso que eu não entendi de que amor era isso que ele estava falando. Como é que se combate tanta violência com amor. Como é que se constrange através do amor. E a cada ano que passa, cada discurso dele que eu leio, eu entendo mais de que amor é esse dia que ele tá falando, né? Não sei se você já leu meu livro, o “Na Minha Pele”…
– Não, ainda não. Vou ler.
Eu estava aqui tentando lembrar e pensar. Já que a gente falou tanto do Luther King, achar um texto dele que dissesse alguma coisa, já que eu acho importante oferecer arte para você também. Estava querendo te oferecer isso. Eu vou falar um pedacinho da peça para você e aí depois vou ler um trecho do último discurso dele.
– Está bom.
“Agora o que me preocupa não é o grito dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter. O que me preocupa é o silêncio dos bons. Se eles pudessem ver que simplesmente o amor é a arma de destruição mais radical que existe. Doce. Amor. Radical. Mas não, ao invés disso eles preferem me ofender com todos os nomes escritos no livro com exceção de filho de Deus. Mas que tipo de homem que se recusa a falar de acordo com a sua própria consciência? Para mim, ele não é um homem. Mas eu sou um homem. Eu sou um homem…”
E aí o discurso dele de verdade, que não é o da peça. É o último discurso que ele fez na vida, chamado “No topo da montanha”. Ele fala assim: “Eu tenho um sonho de que minhas quatro pequenas crianças um dia viverão numa nação onde elas não serão julgadas pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter”. Essa é a nossa esperança.
– Eu brinquei com a minha mulher, falei que eu vou me preparar para que daqui uns três a cinco anos a gente bater um papo igual ele tem com o pessoal lá no espelho.
Ah, tá bom. Esse bate-papo já está marcado. E vai ter que ser bate-papo de família, vamos levar as crianças, levar a Taís também…
– Eu aceito.
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