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Thiago Tassi e Vanderlei Lima
Dentre os 23 jogadores campeões mundiais pelo São Paulo em 2005, talvez Flávio Kretzer fosse o menos conhecido e comentado. Afinal, se a vida era dura para Bosco, reserva direto de Rogério Ceni, imagina para o terceiro goleiro do time. Agora, analise o caso dele, como são-paulino, podendo viver de perto aquele histórico título diante do Liverpool. Era para ter sido o dia mais marcante da carreira, não fosse um lance que quase tirou a vida do ex-jogador, em 2007.
Kretzer fazia a sua estreia pelo Santa Cruz, em uma partida do Campeonato Pernambucano, quando uma forte dividida o fez perder o fôlego, um rim e o deixou entre a vida e a morte. “Cruzaram uma bola da lateral direita nossa, é aquela bola no chão que a gente vai pegar embaixo. Eu peguei a bola, encaixei e um jogador entrou com o joelho no meu lado esquerdo. Pegou direto no rim, partiu o rim ao meio”, conta o ex-goleiro, hoje aos 41 anos, nesta entrevista exclusiva para o UOL Esporte.
Convivendo com a pior dor que já sentiu na vida, Flávio Kretzer teve de segurar firme até ser transferido para um hospital mais estruturado em Caruaru (PE). Só lá, cinco horas depois do choque, tomou remédio para dor e fez uma tomografia para descobrir o que era, de fato, a lesão, como revela o ex-atleta. “A dor renal é a pior que existe, foi um milagre eu ter sobrevivido. Eu não conseguia nem se sentar, aí eu tive que ir para o hospital, o hospital não tinha estrutura. Fiz um raio-x e eu não conseguia respirar direito. Na hora, o médico achou que eu tinha quebrado alguma costela e que tinha perfurado alguma coisa no pulmão, porque eu não conseguia respirar”, começou.
“Depois a gente foi para Caruaru, que era um hospital que tinha mais estrutura, cidade maior, e lá foi feita a tomografia. Mas também tive que esperar um tempão, porque era um domingo e não tinha operador de tomografia lá. Resumindo, foi feita a tomografia e viram que era o rim. Quando eu fui urinar, saiu só sangue. Eu nunca passei tanta dor na minha vida.” O catarinense não lembra o nome do adversário envolvido no acidente, há 13 anos, diz que não houve má intenção e não guarda remorso. Mas lembra direitinho tudo que passou durante aquela semana até a inevitável retirada de um dos rins.
“Fui transferido para um hospital no Recife e tentaram de tudo para ver se conservava o rim, para não retirar. Mas chegou na sexta-feira e eu já tinha perdido muito sangue, mais do que o aceitável. Eu tomei morfina também, durante a semana, e quando chegou na sexta, até a morfina não dava mais jeito na dor. Aí, decidiram me operar e retiraram o rim. Pelo menos eu fiquei aliviado porque parou a dor.”
O acontecimento marcante mudou a vida de Flávio. Ele ficou um ano sem jogar e se apoiou na esposa e em Deus para superar o drama mais difícil de sua vida. Hoje, ele conta a história naturalmente e carrega as lições que só um episódio como esse pode ensinar. “Foi o momento que eu mais cresci, porque na dor, no momento de dificuldade a gente começa a dar valor para várias coisas. Por exemplo, quando eu estava no hospital, não podia nem beber água. Então, a gente valoriza até o copo d’água que a gente toma assim, de forma trivial. O alívio é tudo, já passou.”
São Paulo: sonho realizado e escola com Ceni
Revelado pelo Avaí no começo do século, Flávio Kretzer se destacou no clube catarinense e foi levado para o São Paulo por Marco Aurélio Cunha, em abril de 2003. Entre altos e baixos e rodagem por times como Santa Cruz, Sport, Paulista e Tombense-MG, o último a defender antes de encerrar a carreira, em 2014, o ex-goleiro guarda com carinho os dois anos no Morumbi.
Ali conviveu de perto com o ídolo Rogério Ceni — Kretzer é são-paulino —, desfrutou de uma estrutura de ponta de um clube de elite e até dividiu quarto com o maior goleiro da história do Tricolor no Mundial. Foi uma verdadeira escola, segundo o ex-jogador. “Foi uma escola, imagina. Hoje o Avaí tem uma projeção bem maior do que tinha naquela época. Aí tu vai para o São Paulo, tem tudo, tem CT e a projeção nem se fala. Era um sonho para mim, porque, na verdade, eu sempre fui são-paulino, desde criança. O meu sonho sempre foi jogar no São Paulo, eu não tinha sonho de jogar em times da Europa, e deu certo”
Por todo esse contexto, Flávio levava na boa o fato de que “não jogaria” — já que Bosco era o reserva imediato — e guarda na memória os conselhos que ouvia de Ceni, que teve de esperar para jogar e ressaltava isso para Kretzer e os demais jovens. Antes de assumir a titularidade do São Paulo, o 01 ficou um longo período no banco de reservas, pois Zetti era o dono da meta. Campeão mundial, sim, senhor! Kretzer revelou à reportagem que não se considerava muito campeão mundial até ter um papo com o próprio Ceni sobre a conquista, anos depois. Ali, no contato com um dos mestres de sua carreira, passou a sentir que havia contribuído na campanha.
“É diferente [vencer o Mundial]. Para mim, que era reserva, mudou a minha vida, hoje todo mundo fala que sou campeão do mundo. Uma vez eu até falei com o Rogério, conversando do Mundial, eu disse: ‘Não tive a importância como tu, que jogou lá e tal’. E o Rogério me disse: ‘No fim, a importância é a mesma. Na Copa do Mundo de 2002 eu também estava lá no banco e eu me sinto tão campeão como os outros’. Depois que o Rogério falou assim, mudou até o meu jeito de pensar também”
Kretzer hoje treina o Avaí e se arrisca na bolsa
O ex-goleiro não largou o futebol após se aposentar dos gramados, em 2014. Atualmente, ele é treinador das categorias de base do Avaí e, nas horas vagas, arrisca-se como trader (pessoa que mexe na bolsa de valores).Ele admite não ter se preparado o suficiente para viver uma vida folgada depois do futebol, mas que toca a vida bem hoje em dia. “Sinceramente, eu não me preparei como eu deveria, porque quando eu parei de jogar eu não estava ‘apresentável’, podendo não trabalhar mais. Eu tinha uma reserva, mas eu precisei começar a trabalhar de novo”, afirmou.
Morando em Antônio Carlos (SC), sua cidade natal, próximo a Florianópolis, ele encontrou uma forma para contribuir com a formação de novos goleiros. Não é qualquer um, afinal, que traz na bagagem um Mundial, anos ao lado de Rogério Ceni e um drama raro e muito difícil vivido dentro de um campo de futebol.
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