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Primeira mulher negra a defender o Brasil numa Olimpíada, paulista vivia o esporte por amor ao atletismo e ao São Paulo. Caiu no esquecimento, e seu falecimento, em 2016, não foi divulgado.
Por Dayana Natale, Denise Thomaz Bastos e Helena Rebello –20/11/2020 12h56 • Atualizado há 8 horas
NO PÓS-GUERRA, BRASIL TEM ATLETISMO FEMININO E MULHER NEGRA PELA 1ª VEZ
Com a Europa em reconstrução, definitivamente não seriam Olimpíadas quaisquer. O mundo se recuperava da Segunda Guerra Mundial quando a Inglaterra recebeu os Jogos de Londres, em 1948. Sem margem para luxos, era preciso improvisar. Instalações militares e instituições de ensino foram adaptadas como alojamentos e locais de provas. Nada que incomodasse quem competiria após 12 anos de hiato olímpico.
Seria uma edição histórica para o Brasil. Uma delegação de 81 atletas, apenas 11 mulheres, que pela primeira vez iriam aos Jogos de avião – uma novidade empolgante em comparação a quem, até Berlim 1936, viajava de navio para competir no Velho Continente.
A primeira medalha coletiva do Brasil, um bronze com o basquete masculino, é considerado o ápice daquela campanha, mas o ponto mais importante para a nossa história foi o envio da primeira equipe feminina de atletismo pela Confederação Brasileira de Desportos, a CBD. Entre as seis atletas pioneiras, Melânia Luz, velocista, tornava-se a primeira mulher negra a representar o Brasil numa Olimpíada.
As seletivas em São Paulo, o trem noturno até a Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e o voo da Panair a levaram a um lugar histórico que caiu no esquecimento. Com uma carreira de poucos resultados expressivos e muitas barreiras invisíveis aos olhos, Melânia se agarrou às próprias memórias quando o Alzheimer tentou vencê-la.
– Ela falava para todo mundo: “Eu sou a primeira negra que fui à Inglaterra. Conversei com a rainha”, ela falava. (risos). Mesmo no fim da vida ela lembrava detalhes, quem foi o porta-bandeira… – conta a filha Maria Emília.
Melânia não disputou nenhuma final em Londres. Nos 200m se despediu em quarto lugar na primeira bateria classificatória, com 26s6. O mesmo aconteceu com o revezamento 4x100m. Neste caso, porém, os 49s cravados no cronômetro manual eram o novo recorde sul-americano da prova.
SÃO-PAULINA ROXA
Melânia foi uma das quatro atletas do São Paulo a defender o Brasil em Londres 1948. Além dela também representaram o Tricolor Adhemar Ferreira da Silva, que seria bicampeão olímpico do salto triplo nas duas edições seguintes dos Jogos, e os pugilistas Ralph Zumbano e Vicente dos Santos.
Sem muita afinidade e intimidade com as demais atletas mulheres do atletismo, driblou as orientações de separação entre homens e mulheres para ter a companhia do trio são-paulino sempre que possível.
Melânia nasceu em 17 de maio de 1928, no Bom Retiro, mas foi registrada apenas duas semanas depois, em 1º de junho. Comemorava o aniversário nas duas datas. Foi criada no bairro do Canindé, que na época abrigava a sede social e o centro de treinamento do São Paulo. Os pais, um policial militar e uma dona de casa, eram torcedores fanáticos e passaram a paixão para a filha. A possibilidade de defender o clube do coração foi incentivo o suficiente para começar a praticar esportes.
Uma vez registrada no quadro de atletismo do clube, Melânia passou a treinar com Dietrich Gerner. O alemão radicado no Brasil ficou famoso como técnico de Adhemar, atleta mais condecorado com quem trabalhou e homenageado com duas estrelas douradas no escudo do São Paulo.
– Você não podia ficar brincando, não. “Não estou aqui para brincar com vocês. Estamos aqui para treinar, vocês têm um campeonato, vocês têm que treinar”. “Nós num “guenta”, Melânia, como nós vamos aguentar?” Aí treinava, treinava – disse Wanda dos Santos, atleta olímpica de Helsinque 1952 e Roma 1960, que foi levada do Palmeiras para o São Paulo a convite da amiga Melânia.
O principal feito individual de Melânia como atleta do São Paulo de que se tem registro a nível nacional foi na quarta edição do Campeonato Brasileiro de Atletismo, em 1946. Ela foi campeã dos 200m com 27s e ficou em segundo nos 100m com 13s4. Com a seleção paulista foram quatro títulos no revezamento 4x100m de 46 a 1953.
Internacionalmente a velocista defendeu o Brasil em algumas edições do Campeonato Sul-Americano. Há registros de bronze nos 100m e prata nos 200m em Santiago, no Chile, em 1947, e prata nos 200m em Lima, no Peru, em 1949. Apesar de ter uma Olimpíada no currículo, Melânia nunca competiu nos Jogos Pan-Americanos.
– A Melânia Luz foi uma grande atleta são-paulina, uma das maiores atletas do clube. Ela passou a vida inteira no São Paulo, chegou a competir pelo clube em idade avançada, em categorias sênior – disse Michael Serra, historiador do São Paulo.
O orgulho de defender o Tricolor na pista era reflexo também da paixão fora dela. O pai levava a família ao estádio para torcer na década de 1940, algo muito progressista para a época. A condição de torcedora a acompanharia até o fim da vida, comemorando glórias e se aborrecendo com o futebol do clube.
– Minha madrinha é corintiana. Elas foram num jogo entre São Paulo e Corinthians, o Corinthians marcou um gol. Mamãe deu uma “guarda-chuvada” na minha madrinha e foi embora. Ela era são-paulina roxa, ficava muito brava – lembrou a filha Maria Emília.
ATLETISMO POR AMOR
A ida aos Jogos Olímpicos aos 20 anos de idade foi o ponto alto de uma carreira mais guiada pelo amor ao esporte do que por qualquer pretensão de retorno financeiro. Os treinos no São Paulo foram intensos até Melânia concluir o antigo colegial, com bolsa de estudos, em um colégio particular. Depois, quando começou a trabalhar, passou a treinar apenas aos finais de semana.
Naquela época o amadorismo do esporte olímpico não abria margem para pagamentos. Só ganhava salário quem trabalhava fora, e quem não era de família rica, caso de Melânia e Adhemar, entre outros, precisava organizar a rotina para dar conta de tudo. A corredora trabalhou por 30 anos como técnica de laboratório. Trabalhava pela manhã no Instituto de Saúde e à tarde na Santa Casa de Misericórdia. Depois também prestou serviços ao Complexo Hospitalar Padre Bento.
– A Melânia trabalhava de segunda a sexta. Só sobrava para ela o treinamento de sábado e domingo. As outras atletas contemporâneas dela obviamente não precisavam trabalhar e podiam se dedicar aos treinamentos a semana inteira. Então para a Melânia conseguir o feito de um índice olímpico, na época, isso é de uma enormidade. Isso é extremamente expressivo – disse a historiadora Cláudia Maria de Farias, autora da tese de doutorado “Sonhos, lutas e conquistas: projeção e emancipação social das mulheres brasileiras nos esportes, 1932-1979”.
Os resultados mostram que Melânia se destacava mais nos revezamentos do que nas provas individuais, mas o impedimento de se dedicar em tempo integral sem dúvidas afetou qualquer possibilidade de, pelo esforço e dedicação, manter-se como atleta de elite e seguir na equipe olímpica para os Jogos de Helsinque, em 1952.
O amor pelo atletismo também se tornou amor no atletismo. Melânia casou-se com Waldemir Osório dos Santos, atleta do Vasco, que conheceu enquanto competia. Ele mudou-se do Rio de Janeiro para São Paulo, onde tornou-se funcionário público. Aos domingos era sagrado: a família ia ao Clube Esperia ou ao Clube Tietê para praticar esportes.
O casal tentou engajar a única filha no meio esportivo, mas não vingou. A sobrinha Joece, que vive até hoje no Rio de Janeiro, foi quem levou o nome da família mais adiante no esporte, competindo pela Gama Filho no cenário nacional.
Melânia e Mimico, como Waldemir era conhecido, ficaram casados por 29 anos. Mesmo separados, foi ela quem cuidou dele no fim da vida. E, depois que o ex-marido morreu, decidiu que era hora de voltar a competir, então na categoria máster.
As viagens para os eventos dos veteranos se tornaram parte importante da vida da paulista, que chegou a competir no Mundial de Durban, em 1997, já beirando os 70 anos. Quando voltou da África do Sul aos poucos Melânia foi reduzindo o ritmo até pendurar de vez as sapatilhas.
NEGRITUDE: ORGULHO E PRECONCEITO
O fato de Melânia ser a primeira mulher negra a defender o Brasil numa Olimpíada foi ignorado pela imprensa da época, fosse por desconhecimento do feito ou por não o considerar relevante. A falta de registros e o currículo mais modesto fizeram com que a importância da velocista no contexto histórico fosse minimizada até pouco tempo.
Melânia se adaptou a uma realidade em que era minoria. Fosse no esporte, na escola, no trabalho, muitas vezes era a única negra presente. E ensinou à filha desde pequena que era preciso conquistar espaço e respeito orgulhando-se de suas origens e valorizando outros negros.
Isso se refletia em todos os aspectos de sua vida, nos gostos pessoais. Era fã de Elza Soares, Alcione, Emilio Santiago e Milton Nascimento. Se decepcionou com Pelé quando ele, o maior ícone do esporte brasileiro, negro, casou-se com uma mulher branca. Ela acreditava que, numa sociedade opressora, os negros precisavam se unir, sempre.
Foi assim que Melânia passou a frequentar reuniões de mulheres negras comandadas por Elza, esposa de Adhemar Ferreira da Silva. Ali discutiam as dificuldades cotidianas, dividiam angústias e formavam uma rede de apoio. E ajudavam mesmo quem estava longe.
– Quando a Valeska tinha 17 anos e foi jogar no Pinheiros eu liguei para ela dar uma ajuda, para resolver assunto de banco. A Valeska passou a ir à casa dela… E quando eu ia daqui para São Paulo nós íamos assistir a Valeska jogar. Ela foi muito útil, muito amiga. Era adversária naquela hora na pista mas, acabou, não tem nada a ver. Querendo ajudar todo mundo, socorrer todo mundo – lembrou-se Aída dos Santos, atleta olímpica de Tóquio 1964 e Cidade do México 1968.
No ambiente esportivo, essa camaradagem se refletiu em amizades de longa data com nomes como Wanda dos Santos, que virou madrinha da filha de Melânia, Deise Jurdelina de Castro e Odette Domingos. Wanda, a única das três encontrada pela reportagem, diz não lembrar de nenhum episódio específico de racismo enfrentado por elas. Afirma apenas que “se defendiam”.
Em entrevista à historiadora Cláudia Maria de Farias, em 2009, Melânia disse que não sentia o preconceito latente no esporte porque os negros ficavam “na sua turma”. Mas foi se soltando com a insistência no tema e revelou que constantemente Gerner a comparava a Elizabeth Clara Müller, adversária do Pinheiros e companheira no revezamento olímpico, para atiça-la.
– A pior era a Clara. Porque a Clara era de um clube de alemães mesmo: Esporte Club Germânia (nome do Pinheiros antes da Guerra). Eles eram mais assim sabe… Faziam força para ganhar. E a gente estava também fazendo força para ganhar. (…) Tinha mais é de mostrar para ele (Gerner) que eu podia fazer o que ela faz. Fazia, né?.
Pouco celebrada, pouco procurada para entrevistas em vida, Melânia se iluminava quando tinha a chance de contar a própria história. Foi ouvida pela pedagoga Schuma Schumacher para o livro “Mulheres Negras do Brasil”, lançado em 2008, e tomou consciência plena de seu lugar como pioneira.
O capítulo “Suor e Raça: a caminho do pódio” enumera atletas negras que representaram o país com destaque no esporte. Apesar de o texto não se aprofundar nas memórias de Melânia, as páginas estão repletas de fotos e registros preciosos, como o dito passaporte – que se parece com uma credencial olímpica – usado por Melânia nos Jogos de Londres. Era motivo de maior orgulho para a ex-atleta.
– Nossa! (Para) todo mundo que chegava aqui em casa ela mostrava esse livro. Olha como ele está já. E todo mundo que chegava ela mostrava: “Olha a nega aqui no livro” – contou Maria Emilia, referindo-se ao estado bem gasto da relíquia.
ESQUECIMENTO E RENASCIMENTO: A HISTÓRIA DE MELÂNIA GANHA OS HOLOFOTES
Melânia não viu as Olimpíadas chegarem ao Brasil. Morreu aos 88 anos, no dia 21 de junho de 2016. Naquela tarde foi ao salão de beleza, fez as unhas e o cabelo, e à noite saiu com a filha. No geral gozava de boa saúde. Não tinha diabetes ou pressão alta. Tinha cerca de 52kg distribuídos por 1,69m. Na volta para casa, no carro, faleceu subitamente.
Se o corpo aparentemente estava bom, a mente não era a mesma há quase uma década. Em 2007 Melânia manifestou os primeiros sinais do Mal de Alzheimer. Além do esquecimento de fatos recentes – porque as lembranças da juventude, a filha garante, nunca foram afetadas -, a paulista também sofreu alguns acidentes.
Levou dois tombos graves em 2010 e 2011, e em cada um fraturou um fêmur. Mais impressionante do que as lesões foram as respectivas recuperações. Maria Emilia jura que em um mês a mãe estava andando de novo.
Quando Melânia morreu, a notícia ficou restrita ao círculo próximo de amigos num primeiro momento. Se chegou, ou quando chegou, ao conhecimento das entidades que a atleta representou, não houve manifestação pública ou nota de pesar. A CBAt possui apenas alguns registros de resultados de sua carreira. O COB diz não ter absolutamente nada. A homenagem solitária veio dos alunos do curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que criaram o Grêmio Esportivo Melânia Luz, o Gemel.
– Tínhamos como missão formar um Grêmio Esportivo engajado socialmente e politicamente. Ao pesquisar possibilidades de nomes, Melânia Luz caiu como uma luva por ir em direção a tudo que buscamos para o nosso Grêmio, dado o pioneirismo e a representatividade que seu nome carrega. Sua invisibilidade na mídia demonstra uma das facetas do racismo estrutural. Não tínhamos dúvidas que ela seria nossa matrona. À época não sabíamos ao certo se ela estava viva, justamente pela falta de informações em jornais, revistas ou online – disse uma das fundadoras do Gemel, Layla Silva.
Movimentos antirracistas e de estímulo à representatividade negra resgataram recentemente a história de Melânia. E o reconhecimento mais popular veio na forma de reprodução desenfreada na internet. O pioneirismo foi ressaltado com orgulho, mas sem a ressalva de que a ex-atleta, infelizmente, não está viva para finalmente colher os louros.
– (Melânia foi) a primeira mulher negra a representar o Brasil numa Olimpíada e mostrar que ser negra e mulher não deve ser fator de limitação para alguém – disse Thiago, neto de Melânia.
Depois que Melânia foi aos Jogos em 1948, as mulheres negras se multiplicaram na história olímpica do Brasil. Wanda, Deise, Aída, Silvina das Graças, Esmeralda de Jesus, Conceição Geremias… Estas e outras suaram para construir a base que permitiria às gerações seguintes encarar um caminho ligeiramente menos tortuoso.
– O brasileiro precisa ter essa noção da sua história, lembrar dos que vieram antes dele. Respeitar quem veio antes e saber que se você está correndo, se você tem um índice, tem uma notoriedade dentro do esporte, seja o esporte qual for, muitos sofreram antes de você. Então é importante a gente valorizar e sempre lembrar – completou Thiago.
Na primeira Olímpiada em que as mulheres do Brasil foram ao pódio, Atlanta 1996, o bronze do vôlei e a prata do basquete contaram com mãos negras: Fofão, Hilma, Márcia Fu, Alessandra, Cláudia Pastor, Cintia Tuiú, Janeth, Leila, Marta e Roseli. A primeira medalhista olímpica do Brasil em um esporte individual, a judoca Ketleyn Quadros, é negra. A recordista em participações olímpicas entre homens e mulheres, Formiga, também.
A lista de pioneiras, cada uma com sua particularidade, com sua pequena grande vitória, é imensa. E elas, mesmo as que nunca tinham ouvido falar de Melânia até serem procuradas pela reportagem, entendem a importância de quem, lá atrás, abriu as portas do olimpo. E, por isso, hoje agradecem.
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