A grande mágoa de Miranda: ter ficado de fora da seleção na Copa do Mundo de 2014

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UOL

Em meio à pandemia do novo coronavírus, Miranda conquistou no último dia 12 de novembro o título de campeão chinês pelo Jiangsu Suning. O troféu, inédito na história do clube, foi mais na sua longa trajetória no futebol. Ídolo no São Paulo, destaque da melhor da defesa da Europa no Atlético de Madri, entre 2011 e 2014, e titular da seleção na Copa de 2018, o zagueiro de 36 anos tem uma carreira sem arrependimentos, mas com um senão: ter ficado de fora dos convocados de Felipão para o Mundial de 2014, quando vivia seu auge.

Em mais de uma hora de entrevista ao UOL Esporte, Miranda não escondeu a tristeza que guarda por ter ficado de fora da Copa do Mundo realizada no Brasil. A escolha de Scolari o poupou de estar em campo no 7 a 1 diante da Alemanha, o maior vexame da história da seleção, mas essa ironia do destino não lhe traz consolo. Até hoje, mais de seis anos depois, Miranda ainda acredita que sua presença poderia contribuir para um final diferente no Mineirão.

A conversa foi gravada na mesma semana em que um caso chocou o Brasil: João Alberto Silveira de Freitas, um homem negro de 40 anos, foi espancado até a morte em uma unidade do Carrefour em Porto Alegre, na véspera do Dia da Consciência Negra. O zagueiro aproveitou para falar sobre racismo no Brasil e no mundo, criticou a normalização de atos racistas no futebol e pediu punições mais severas aos infratores.

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Miranda falou sobre todos os momentos da carreira, do início no Coritiba ao momento atual na China. Diante das dificuldades em jogar em uma realidade tão diferente da brasileira, o zagueiro já fala em voltar para o Brasil para encerrar sua carreira, assim que o contrato com o time chinês terminar, no meio de 2021. E avisa: a preferência é o São Paulo ou o Coritiba, time que o revelou. Mas não descarta outro destino caso o interesse não seja recíproco. Para isso, afirma que ainda tem condições de atuar em alto nível por anos, e se coloca, inclusive, ainda à disposição de Tite.Clive Brunskill/Getty Images

A grande tristeza em uma carreira de alegrias

O ano de 2014 era o auge da carreira de Miranda. Aos 29 anos, formava, ao lado do uruguaio Godin, a melhor defesa da Europa no Atlético de Madrid. Em maio, esteve a minutos, talvez segundos, de levantar a taça histórica da Liga dos Campeões, mas viu o Real Madrid empatar nos acréscimos e virar o placar na prorrogação. Apesar da dura derrota, esperava estar na lista de Felipão para a Copa, realizada no Brasil. O treinador, entretanto, optou por outros atletas como David Luiz e Henrique.

“É uma pessoa que escolhe, né? A seleção brasileira é muito grande, respeitada, mas na convocação é uma pessoa que escolhe, não é enquete, não vai quem que o público acha o melhor”, afirma. “Ele achou que, no momento, o melhor para seleção brasileira era chamar aqueles outros nomes, eu procurei sempre respeitar porque era uma opinião, era a opinião dele. Infelizmente não deu certo, mas poderia ter dado, então é difícil falar. Eu estava atravessando um momento de excelência, eu me considerava naquela lista. Fiquei chateado sim. O que me deixava tranquilo era saber que eu estava em alto nível, que era um dos melhores na posição e poderia ter ajudado a seleção”.

A ausência na convocação de Luiz Felipe Scolari acabou livrando Miranda de ser parte da goleada por 7 a 1 sofrida diante da Alemanha nas semifinais, no Mineirão. O fato de ter sido “salvo” de um dos maiores vexames da história do futebol não serve, entretanto, como fonte de alívio ou consolo.

“Meu pensamento é de que eu deveria estar lá, sabe? Eu penso que se eu estivesse na seleção naquela época, com certeza, aumentaria o nível sim. Não sei, se eu estivesse lá, se ia sofrer os mesmos gols que sofreu, mas, com certeza, eu ia contribuir e ajudar muito. Eu fiquei muito triste de não ter sido convocado. Se a história poderia ser diferente ou não, isso nunca ninguém vai saber, inclusive eu, mas, com certeza, eu fiquei triste de não estar lá, e não feliz de não ter sido convocado tendo acontecido o que aconteceu. Não é consolo”.

 AFP PHOTO / PATRIK STOLLARZ

Alvo de disputa entre São Paulo e Internacional

Miranda começou a carreira com destaque no Coritiba, e foi cedo para a Europa, mas não conseguiu se firmar no Sochaux, da França. São Paulo e Inter monitoravam seu desempenho e, em 2006, passaram a disputar quem iria repatriá-lo. O clube paulista levou a melhor, e os gaúchos ficaram revoltados: alegavam que tinham acertado todos os termos com o zagueiro, que hoje conta uma versão diferente.

“Foi uma negociação envolvendo muitos empresários, e chegava em mim pouca coisa. Realmente estava bem evoluído com o Internacional, mas os empresários que estavam envolvidos, na época, esconderam de mim a maior parte da negociação. E quando eu descobri, vi que não estava correto tudo”, lembra. “Justamente nesse período, o São Paulo também estava interessado, eu estava em conversação com o São Paulo. O Inter, em tese, estava oferecendo uma coisa, mas chegou para mim outra. Quando eu fiquei sabendo disso, fiquei um pouco triste, porque os empresários estavam escondendo muitas coisas de mim. Preferi acertar com o São Paulo porque consegui falar diretamente com a diretoria”.

Extremamente incomum no futebol brasileiro, a negociação sem empresário acabou sendo o principal trunfo que garantiu a chegada de Miranda ao Morumbi. “Eu mesmo que conversei com São Paulo, então isso facilitou muito a negociação. Me senti enganado indo para o Inter. Não era pelo Inter, mas sim pelos empresários, pelas pessoas que estavam envolvidas. Com o São Paulo foi uma coisa bem direta”.

Eu fui muito jovem para a França, com filho pequeno, um país onde eu não falava o idioma. O futebol era um pouco diferente que eu esperava, muito físico, muito contato e eu sempre fui mais técnico. Também era o meu primeiro ano na Europa, joguei, se eu não me engano, umas 20 partidas. Eu considerava pouco. Hoje eu vejo que jogar 20 partidas na Europa, para um jovem que está iniciando é muito, mas eu não estava satisfeito, queria ter mais visibilidade”.

Miranda, sobre decisão de voltar ao Brasil após passagem pela França

Eduardo Anizelli/LatinContent via Getty Images

Ídolatria no São Paulo

No São Paulo, Miranda ganhou projeção rapidamente. Tricampeão brasileiro, foi eleito para a seleção do Brasileirão em quatro das cinco temporadas que disputou, e hoje lembra que sempre acreditou que encontraria no Morumbi o sucesso e o caminho para se tornar um dos melhores do mundo na posição.

“Eu tinha um planejamento. Já que eu estava retornando para um grande clube, eu queria e almejava ser um dos melhores na minha posição. Eu me lembro que na primeira entrevista que eu dei já falei que estava retornando para o Brasil para jogar na seleção brasileira e onde estão os melhores na posição. Eu já acreditava muito no meu potencial e sempre trabalhei duro para alcançar esses objetivos”.

Com a camisa do São Paulo, Miranda viveu a última grande fase de títulos e vitórias do clube. À distância, ao longo da carreira, viu as dificuldades aumentarem no Morumbi, e as conquistas desapareceram: a última foi em 2012, na Copa Sul-Americana. O zagueiro enxerga um processo natural de entressafra, e acha que, em 2020, o caminho do sucesso está sendo retomado sob a batuta do técnico Fernando Diniz.

“O São Paulo passou por um momento muito vitorioso, foram períodos de muitas glórias, e é natural, depois de tantas transformações, mudança de elenco, mudança de diretoria, que começasse a oscilar. Quando você ganha muito, o clube, primeiro se acostuma a ganhar, depois deixa de evoluir, porque quando está ganhando, você não acha que precisa melhorar”.

“Eu vi o São Paulo que deixou de evoluir, os outros clubes evoluíram mais, mas acompanho muito o São Paulo, e, especialmente esse ano, vejo em uma crescente muito boa, que pode estar retomando o caminho dos títulos, com certeza. Eu vejo o São Paulo hoje muito mais forte, muito mais maduro, já é um primeiro passo de retomar o caminho dos títulos”.

Miranda, sobre fase “seca” do São Paulo

Laurence Griffiths/Getty Images

Mudança para Madrid e efeito Simeone

Com o sucesso absoluto no São Paulo, Miranda se transferiu para o Atlético de Madri. Ao lado do uruguaio Diego Godin, formou a melhor defesa da Europa, foi campeão espanhol em meio aos poderosos Real Madrid e Barcelona, venceu uma Liga Europa e foi finalista da Liga dos Campeões. Se ele e Godin cuidavam da retaguarda, quem regia a orquestra era Diego Simeone, que marcou a carreira do brasileiro.

“O Simeone pegou um Atlético em dificuldade, um Atlético que fazia muitos gols, mas também sofria muitos gols pela maneira de jogar. Ele é um cara inteligente, analisou como que gente estava jogando na época e falou ‘vamos mudar tudo, vocês tem muita qualidade para jogar com a bola, mas precisam melhorar muito sem a bola’. Ele alterou o estilo de jogo, e essa alteração foi dando certo. Os jogadores compraram a maneira que ele queria de jogar”.

O zagueiro descreve um técnico que fazia questão de acompanhar de perto cada atleta, conversar individualmente, mostrar explicações para as escolhas táticas e extrair o máximo possível de cada um. Para Miranda, essa cultura foi fundamental para lhe garantir tantos anos em alto nível.

“Isso me ajudou muito porque ele não deixou, em momento nenhum que estive no Atlético, relaxar. Até mesmo depois de ter ganho muitos títulos, ele sempre procurou estar perto da excelência. Treinar bem para jogar bem. Levo isso para toda a minha carreira, sempre aproveitando cada dia, cada momento de treino, tentando tirar proveito do melhor Miranda em todos os aspectos. Me ajudou a manter o alto nível durante toda essa minha carreira”.

Ele [Simeone] exige o melhor de cada jogador, isso me ajudou muito. Ele não queria só ganhar, ele queria ganhar tirando o melhor de cada jogador, tanto no treino, quanto nos jogos. Queria sempre a evolução. Se ele via que algum jogador estava meio acomodado com a situação ou com as vitórias, ele cobrava e era muito rigoroso com isso. Ele queria sempre que estivéssemos melhorando, sempre em evolução”.

Miranda, sobre Simeone, treinador do Atlético de Madrid

Eu vejo muitos treinadores se preparando, muitos jovens surgindo e, ao mesmo tempo, vejo muitos treinadores que são vitoriosos e querem ganhar por aquilo que já fizeram, que praticamente não evoluíram com o futebol. O europeu aprendeu com a nossa qualidade técnica, eles tinham a parte tática bem evoluída e, ao mesmo tempo, a gente não aprendeu a parte tática do europeu. Nossos treinadores têm que se preparar ainda mais, acompanhar essa evolução”.

Miranda, sobre diferenças entre técnicos brasileiros e europeus

Catherine Ivill/Getty Images

Catherine Ivill/Getty Images

Copa de 2018, o duelo com Lukaku e eliminação

Em 2015, depois do grande desempenho na temporada anterior, Miranda se transferiu para a Internazionale, de Milão. Na Itália, manteve o alto nível e atuou por quatro temporadas, mas não conseguiu traduzir o sucesso em títulos. O desempenho, entretanto, lhe permitiu alcançar o sonho que escapara em 2014, e ser titular do Brasil na Rússia em 2018. A seleção passou longe do vexame de quatro anos antes, mas bateu na trave e foi eliminada pela Bélgica nas quartas de final. Para o zagueiro, é difícil apontar onde o Brasil errou.

“Depois de um certo tempo que você começa analisar e vê que isso é o bonito do futebol. Nem sempre o melhor vai vencer, nem sempre o grande favorito vai ganhar, e isso torna o futebol mais apaixonante. Você pode controlar seu desempenho, não pode controlar o resultado. Tem que ter uma sincronia dos 11 [jogadores], tem que ter uma atmosfera perfeita”, explica.

“Às vezes, você pode fazer tudo correto e não vencer. Foi o que aconteceu nesse mundial, a seleção brasileira, todos os jogadores, comissão técnica, toda CBF, toda estrutura foram perfeitos, mas não vencemos”.

O Brasil caiu diante da Bélgica por 2 a 1, e, apesar da derrota, Miranda foi um dos destaques positivos do time. Na segunda etapa, marcou o atacante Romelu Lukaku de forma quase que individual, e levou a melhor na maioria das disputas.

É um jogo muito triste até de comentar, porque fomos eliminados. Foi um jogo em que eu tive que me sacrificar pela seleção brasileira, para deixar meus companheiros mais à vontade, sem ter que fazer cobertura. Falei para o pessoal ‘a gente precisa atacar, precisa tentar empatar esse jogo, buscar o resultado. Eu me viro aqui atrás. Eu consigo suportar o poderio do ataque da Bélgica, com o Lukaku’. Consegui demonstrar minhas qualidades, marquei um atacante muito difícil, um dos melhores da Copa naquele momento, e consegui fazer uma boa marcação, fazer um grande jogo né? Sou elogiado até hoje, por aquela atuação.”

Miranda, sobre eliminação para Bélgica em 2018