GloboEsporte
Carlos Eduardo Mansur
Num país em que, seja qual for o contexto econômico, os membros do tradicional grupo dos gigantes são sempre cobrados por títulos, a proteção de biografias não costuma combinar com o engajamento em clubes afundados em dívidas. E as recentes manifestações de dois personagens históricos do São Paulo deixam claros os motivos.
Da entrevista coletiva de Rogério Ceni ao áudio vazado de Muricy Ramalho, o primeiro e óbvio sintoma era facilmente perceptível: dois ídolos divididos entre um desafio profissional e a preocupação de defender um legado, uma imagem. “Não posso jogar uma história de 26 anos fora”, disse Ceni. “Eu tenho uma historia lá”, afirmou Muricy. Nem sempre será possível retornar ao clube onde se construiu coisas grandes, uma idolatria, sem arriscar nada. Por vezes, a vida impõe opções e, uma delas, é decidir encarar ou não um projeto de peito aberto. Ocorre que o Brasil tem suas peculiaridades.
Rogério Ceni durante jogo do São Paulo — Foto: Rubens Chiri / saopaulofc.net
E, neste ponto, o episódio expõe um ponto crucial e recorrente no futebol brasileiro. Seja por autodefesa ou preocupação genuína com o clube que defenderam por décadas, Ceni e Muricy terminaram se transformando nos porta-vozes de uma mensagem que quase todos os clubes do país que vivem apuros econômicos hesitam em enviar de forma clara à arquibancada: o real tamanho da crise, as ambições esportivas possíveis, realistas.
O futebol brasileiro ainda é um ambiente com imensa dificuldade de se divorciar da falsa noção de que todos os gigantes precisam ser candidatos, todos os anos, a todos os títulos. Seja por finalidades políticas ou apenas por aproximação com o torcedor, dirigentes relutam em fazer o dever de casa básico de instituições em crise: a gestão de expectativas. As mensagens passadas ao público são contraditórias. Justiça se faça, a atual direção do São Paulo até tem adotado um discurso de reconstrução e abordado os problemas. Mas não é simples reformar tão rapidamente a percepção e as expectativas do público. Ainda que por obra da gestão anterior, este mesmo São Paulo há pouco tempo apostou alto e se endividou para ter Daniel Alves. Após vencer um Paulistão transformado em Copa do Mundo, o clube, que fora ao mercado no início da temporada, terminou por criar uma expectativa muito mais alta do que o desempenho no Campeonato Brasileiro. A questão é que, por mais que se assuma a dificuldade econômica, é raríssimo que a mensagem seja suficientemente clara a ponto de as ambições esportivas sejam expostas ao público de forma realista. Romper uma cultura exige tempo e trabalho.
Talvez não houvesse personagens mais aptos a um processo de reconstrução, de recondução de um gigante a seus melhores dias do que ídolos históricos. A questão é que, em geral, processos sérios de saneamento de clubes exigem travessias por vezes dolorosas, escassas em vitórias. Mas o contexto costuma ser rapidamente esquecido e tais caminhadas acontecem cercadas pela mesma expectativa dos tempos de glória e fartura. Se as vitórias não chegam, os protagonistas ficam expostos.
É como uma via de mão dupla. O ídolo, ao assumir um projeto, precisa entender que a volta para a antiga casa impõe uma dose de risco, por mais que ser parte de uma passagem árida da história do clube não implique em manchar páginas brilhantemente escritas no passado. Mas se a prioridade é proteger a biografia, talvez reatar o casamento se torne desaconselhável. Por outro lado, talvez o futebol brasileiro, diante de uma nova realidade econômica, precise dar passos à frente rumo à gestão das expectativas de seus tradicionais gigantes. Em especial na comunicação com a arquibancada. Não se chega ao fim da reconstrução sem atravessar o caminho. Talvez não tenhamos aprendido a desfrutar da viagem.
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