17 de junho de 1992: “Hoje tem que ser o nosso dia”

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GloboEsporte

Macedo

Nos 30 anos da primeira Libertadores do São Paulo, Macedo, o herói do título, relembra o caminho.

Eu hoje estou com 52 anos. E posso garantir uma coisa para vocês: nunca me esqueci daquele lance, daquele 17 de junho de 1992. Afinal, era uma decisão de Libertadores. O primeiro título de Libertadores do São Paulo…

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Lembro bem como aconteceu, mesmo depois de três décadas. A gente tinha perdido o jogo de ida por 1 a 0 do Newell’s Old Boys, na Argentina. Precisava vencer por um gol pra pelo menos ir pros pênaltis. Eu comecei no banco, mas entrei no segundo tempo. Foi a primeira vez que toquei na bola.

O Pintado meteu no Palhinha. O Palhinha dominou no peito, dentro da área, mas a bola escapou. Eu pensei: “Vai sobrar”.

Eu me adiantei e ele deu um biquinho pra mim. Eu dominei, o Gamboa veio. Aí eu ameacei bater, e o goleiro caiu. O Gamboa viu que não ia me alcançar, eu ia bater de perna esquerda pra fazer o gol. E então ele puxou minha camisa.

Macedo, do São Paulo, sofre pênalti na final da Libertadores de 1992 - Arquivo Histórico do São Paulo Futebol Clube
Macedo, do São Paulo, sofre pênalti na final da Libertadores de 1992 – Arquivo Histórico do São Paulo Futebol Clube

Eu não cavei. A gente, naquela época, jogava com a camisa dentro do calção. Podem ver: na hora em que eu me levanto, começo a empurrar a camisa pra dentro. E dali eu vou comemorar com a torcida, parecia que o gol já tinha saído. Eu sabia que o Raí ia fazer.

O jogo na Argentina tinha sido duro. Meu Deus do céu. O ônibus não tinha onde encostar. Uma loucura, uma loucura. Parecia que a torcida caía dentro do campo. Perdemos a partida de ida daquela final, mas no vestiário estava claro pra nós que o São Paulo tinha condições de reverter. Saímos de lá conscientes disso.

Aqui, a torcida do São Paulo foi em peso. Tinha 105 mil pessoas no Morumbi, mais gente do lado de fora. Além dos milhões de são-paulinos vendo na televisão.

Quando eu olhei o estádio, falei: “Hoje tem que ser o nosso dia”.

Muita gente fala que eu era reserva do São Paulo, mas eu era titular. Em 1991, no Paulista, eu fui titular. Aí eu fui pra seleção no ano seguinte, mas pedi pra vir embora. O Telê Santana ficou maluco comigo.

Era a seleção olímpica, eu tinha 22 anos. A gente ia disputar o Pré-Olímpico pros Jogos de Barcelona, estávamos na Granja Comary. O Telê que me indicou pro Ernesto Paulo, o treinador da época.

No dia, o Ricardo Teixeira, que era presidente da CBF, veio falar comigo: “Cê quer ir embora? Cê é indicação do Telê, o que a gente vai dizer pra ele?”. Não sei, cara. No Aeroporto do Galeão, no Rio, eu peguei meu passaporte da mão do supervisor e não viajei.

Aquela seleção era uma bagunça. Mas eu podia ter ajudado, eu tinha potencial. Cheguei no São Paulo, o Telê me questionou. E foi aí que ele acabou colocando o Palhinha no meu lugar. A verdade é que eu não podia ter pedido pra ir embora. O sonho de todo atleta é jogar na seleção.

E ainda mais no meu caso. Minha infância foi muito difícil. Eu nasci em Americana, meu pai era analfabeto, minha mãe também. Eles vieram da Bahia pro interior de São Paulo pra tentar a vida. Meu pai era furador de poço, ele furava poço muito bem.

Macedo no estádio do Rio Branco, em Americana, onde começou no futebol - Leonardo Lourenço
Macedo no estádio do Rio Branco, em Americana, onde começou no futebol – Leonardo Lourenço

Tenho 11 irmãos, sou o caçula entre os homens. Dois deles jogavam bola. Eu via, e comecei a ter gosto. Eu jogava na rua de casa, descalço. Na época, a gente apostava pão com mortadela e guaraná. Comi muito pão com mortadela.

Eu tinha 12 anos, e meus amigos começaram a falar pra eu fazer uma avaliação no Rio Branco, o time da cidade. Fui aprovado, mas não tinha ajuda de nada. Eu ia treinar a pé, não tinha dinheiro pro ônibus.

Minha mãe queria que eu trabalhasse. Meus irmãos não tavam virando nada. Ela não gostava, não via dinheiro. Meu pai incentivava, era santista roxo. Eu virei santista por causa do meu pai. Quando eu era pequeno, ele falava: “Cê quer aprender a jogar bola? Vê o Pelé jogar”.

Meu pai cortava cana às vezes, minha mãe apanhava algodão. Eu, com 15 anos, ia ajudar.

Estudei muito pouco, fui até a quarta série. Naquela época, jogador não precisava estudar. Os clubes não cobravam. Só que o estudo faz muita falta.

No Rio Branco, as coisas não tavam dando certo. Meu irmão, que tava no Osvaldo Cruz, me ligou. Eu fui pra lá, falei pra minha mãe que não ia mais dar gasto pra ela. Passei na avaliação, mas quando foram me registrar na Federação Paulista, não funcionou. Meu passe estava ligado ao Rio Branco, que não quis me liberar.

Eu falei pros caras inverterem meu nome. Eu sou Natanael dos Santos Macedo, eles colocaram Natanael Macedo dos Santos. Deu certo. Joguei lá, fui bem. Parei no Noroeste, de Bauru. Aí o Rio Branco foi atrás de mim.

Em 1990, o Afrânio Riul, ex-treinador, me pegou de volta. Fui artilheiro da Série A-2, com 14 gols. O Rio Branco subiu pra primeira divisão pela primeira vez, a gente andou de carro de bombeiro.

Teve um jogo que foi a seleção da A-2 contra a seleção da A-3, preliminar da final do Brasileiro de 1990, São Paulo x Corinthians. Acabou o jogo, eu fiquei na arquibancada assistindo.

Olha como o mundo dá voltas: eu tava lá, vi o Tupãzinho fazer o gol em que o Corinthians derrotou o São Paulo. Um ano depois, eu tava dentro do campo ajudando o São Paulo a ganhar do Corinthians na final do Paulistão.

Eu não sabia, mas o Telê tava me observando. Voltei pra Americana, e o presidente do Rio Branco me avisou que tava me negociando com o São Paulo.

O Telê falou comigo só lá na Barra Funda, que foi ele quem mandou me contratar, que viu talento em mim.

Mas ele falou: “Cê não sabe cabecear, cê não sabe chutar”. Achei estranho, tinha sido artilheiro da A-2. “Cê quer aprender?”.

Ele começou a ficar comigo depois do treino. Todo mundo ia embora, eu ficava treinando cabeceio com ele, batendo na bola. “Deita na bola, tenha postura”, ele falava. “Tem que saber cabecear, não é no cucuruco, é na testa”. Eu cabeceava e pegava no cucuruco. “É na testa, que não dói”.

Eu era um menino novo, tinha umas coisas na cabeça. Eu ia lá e fazia. Vi um adesivo de uma mulher, coloquei no meu carro, o Telê não gostou. Era um rosto de uma mulher, um rosto muito bonito, um cabelão grande. Eu tinha um Kadett GS, era da moda. Coloquei a mulher lá nas portas, no capô. Ele mandou tirar.

Uma vez saí com o Valber, zagueiro. Falei pra ele: “Às 23h, temos que entrar na Barra Funda, o Telê não deixa entrar depois”. Nós fomos na Rua Augusta, onde tem aquelas boates. Ele gostou de uma menina, não queria ir embora.

Chegamos eram quase 5h. Do lado do muro do CT, ele parou o carro, mandou abrir o capô e tirou uma peça do motor: “Vamos chegar empurrando, dizer que fazia horas que a gente estava empurrando o carro.” Era pro guarda cair na nossa e deixar a gente entrar. Mas ele falou que não podia entrar sem a autorização do Telê.

Deu cinco e pouco, o Valber pulou o portão. O guarda anotou. No outro dia, o Telê nos multou em 30% do salário.

Fiquei no banco na Libertadores, mas eu tava muito bem, a torcida viu, fui importante naquele campeonato.

Time do São Paulo que iniciou a partida contra o Newells Old Boys, na Libertadores de 1992 - Arquivo Histórico do São Paulo Futebol Clube
Time do São Paulo que iniciou a partida contra o Newells Old Boys, na Libertadores de 1992 – Arquivo Histórico do São Paulo Futebol Clube

A segunda partida da final contra o Newell’s, em casa, tava difícil. E a torcida começou a gritar meu nome.

O Telê estava indeciso, meio perdido. Ele não sabia quem tirar. Como você ia tirar o Muller do jogo? Um cara que tem aquela história, mas que não tava bem no dia.

“Ô Moracy, aquece o Macedo”. Ouvi ele gritar no meio do segundo tempo. Eu saí a mil.

Telê me falou: “Ó, eu tô tirando o Muller. Você não vai ficar entre os zagueiros. Você abre, seu forte é a diagonal”. O Gamboa tava marcando muito, os argentinos tavam fechados no meio. Eu era jogador pra quebrar a linha, era habilidoso. Eu falei pra ele: “Tá bão”.

Eu tava louco pra fazer o gol, ajudar o São Paulo. Queria saber do título, um que o São Paulo não tinha. Eu já tinha o Paulista, o Brasileiro, queria mais um.

Entrei aberto, e na primeira bola meteram no Palhinha. Era a minha primeira jogada. Sou rápido no raciocínio dentro de campo, penso rápido. Se bobear comigo, em coisa de segundos, eu vou lá e “bum”. Eu guardo ou sofro pênalti. Sofri o pênalti.

A gente forçou pra fazer o segundo, pra acabar ali nos 90 minutos mesmo, mas não deu, terminou 1 a 0 mesmo. Foi pros pênaltis.

Eu não tava na lista, mas se precisasse, eu ia bater. Mas foi bom demais que não precisou, cê é louco.

É uma responsabilidade do caramba bater pênalti. Eu batia bem, mas eu já era uma peça importante naquela história por causa do pênalti sofrido no tempo normal. E se eu erro? Era herói, ia virar vilão? Pra mim… não era medo. Mas fiquei torcendo pra que acabasse logo, antes de chegar em mim.

Quando o Zetti pegou o pênalti do Gamboa e a disputa terminou 3 a 2 pra gente, a torcida invadiu o gramado. Não tive tempo de correr.

Levaram minha chuteira, minha camisa, que eu ia guardar, levaram minha meia. Não levaram meus shorts porque eu falei: “Pelo amor de Deus, eu não jogo de sunga”.

A polícia veio e começou a dar cacetada nos caras. Eu vi torcedor catando grama com a mão, uns cortando pedaços de rede pra levar embora, os caras na loucura.

Passado tanto tempo, ainda lembro da torcida que invadiu o campo, da alegria daquele povo. Não tem dinheiro que pague. Eu realizei o sonho de milhões. É uma honra. Quantos não queriam isso?

É por tudo isso que eu nunca me esqueci daquele lance. Essa história nunca vai ser apagada.

*Em depoimento a Leonardo Lourenço.

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