Como Telê tirou Raí do sério para transformar o camisa 10 em grande ídolo

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Do UOL

Raí era camisa 10 do São Paulo, capitão do time e tinha moral com a torcida no Morumbi em 1990, mas ainda não caminhava para se tornar um dos maiores ídolos da história do clube. Foi preciso que alguém o tirasse do sério para que o meia evoluísse e atingisse todo seu potencial. O responsável por isso foi Telê Santana.

Raí chegou ao São Paulo em 1987 e teve um começo instável: era chamado de lento e frequentemente ficava no banco de reservas. Só virou titular absoluto em 1989, ano da primeira conquista pelo clube, o Campeonato Paulista. Telê chegou no ano seguinte. Logo de cara, o treinador resolveu provocar aquele que era o maior talento de um time que não se encontrava dentro de campo.

“Quando ele chegou, eu diria que eu estava em um momento de uma certa acomodação. Era capitão do time, titular absoluto, já tinha ido para a seleção. Eu sempre gostei de ser o maestro do time, organizador, dar o passe, distribuir, e o Telê chegou me provocando: ‘Você faz tudo isso muito bem feito, mas pode fazer muito mais gols, tem 1,90m. Faz quantos gols de cabeça por ano? Para isso tem que treinar, tem que estar mais presente na área, ajudar mais na marcação, ser um jogador mais completo’. Ele começou a me provocar”, recordou Raí. Assinante UOL tem acesso exclusivo ao documentário “És o primeiro” sobre os três títulos mundiais do São Paulo Futebol Clube, ao qual o ídolo deu a entrevista.

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A obra detalha os bastidores dos três títulos mundiais do clube do Morumbi com histórias contadas pelos protagonistas das conquistas de 92, 93 e 2005.

“Tinha treinamentos que ele via que eu estava jogando bem, mas poderia melhorar, ele me tirava e me colava no time reserva. Nos jogos, teve uma época que ele pegou vários jogos seguidos, jogando bem ou mal, ele me tirava do jogo faltando 20 minutos, uma coisa que eu detestava, sair do jogo. Ele sabia que isso mexia comigo. Ele fez eu perceber que eu poderia dar muito mais e não se contentar com menos do que aquilo que eu poderia dar”, contou.

Aconteceu na semifinal do Brasileirão de 1990. O São Paulo venceu o Grêmio por 2 a 0, com dois gols de Raí, uma “partida quase perfeita”, segundo o próprio camisa 10.

O Telê me chamou no dia seguinte e disse que era isso que ele queria, perfeccionista como ele era: ‘Um jogador com esse nível de jogo não pode se contentar com menos que isso’. Então, ele não deixava que a gente se acomodasse, fazia a gente tirar mais e ele sabia que a gente poderia chegar mais longe do que nós tínhamos consciência.” Raí

Raí explica que Telê não era daquele jeito só com o camisa 10. O treinador usava diferentes técnicas para pegar no pé de cada jogador em diferentes momentos. Com o ex-meia, o técnico era irritante no começo, mas depois eles criaram uma admiração mútua.

“Virei porta-voz, ele começou a se abrir mais, pegar confiança, acho que tive papel importante como um dos líderes que ele acabou ganhando muita confiança e deu uma amenizada nesse estilo dele mais autoritário e começou a ouvir também o grupo. Aí criou um equilíbrio que foi importante para esse período.”

O gol de falta dos sonhos

Raí bate falta na final do Mundial de 1992 - Arquivo histórico do SPFC - Arquivo histórico do SPFC
Raí bate falta na final do Mundial de 1992 Imagem: Arquivo histórico do SPFC

Sob o comando de Telê, Raí chamou a responsabilidade e teve gols decisivos. O auge foi a final do Mundial de Clubes de 1992, quando o camisa 10 fez os dois gols na vitória do São Paulo por 2 a 1, de virada, contra o Barcelona. O primeiro gol foi de púbis, como o próprio Raí descreveu. Ele aproveitou cruzamento da esquerda de Muller e só deixou a bola bater em seu corpo.

“A bola vinha com uma curva que, se batesse em um poste, entrava. Então, eu só me fingi de poste, como eu sou grande. Foi aquela coisa da tabela. A bola, onde tocar, vai para o outro lado com efeito e ainda engana o goleiro. Mérito do cruzamento, que foi 80% do gol”, disse.

Já no segundo tempo, Raí cobrou falta com perfeição por fora da barreira e marcou aquele que é um dos principais gols da história do São Paulo. Tudo, ele explica, foi treinado, mas nunca havia dado certo até então em uma partida oficial.

“Aquele ano, a gente treinava muita falta, e aquela ali entrava nos treinos. No jogo, só na trave, passava perto, enganava o goleiro, mas ia fora. A gente foi teimoso, continuava treinando e fui pegando confiança daquele jeito. Tinha feito o gol no jogo e isso dava muita confiança para tentar a jogada que nunca tinha dado certo. Eu sabia que se funcionasse seria mortal, porque o goleiro nunca espera.”

Quando vi a bola entrando, saí correndo e visando ele [Telê]. Tudo que ele foi importante, não só no trabalho, todos nós ali éramos fãs, admiradores dos times dele da década de 1980, tudo que ele pregava, tudo que a gente viu com a gente na prática. Era mais que um agradecimento pelo que ele fez por nós, por aquele time, pelo Mundial, era um agradecimento pelo que ele fez pelo futebol, ia muito mais além” Raí

A emoção pelo primeiro título mundial do São Paulo foi tanta que Raí até sonhou enquanto dormia após a vitória contra o Barça com um terceiro gol naquela final.

“Eu lembrei que eu fiz o gol, acordei na comemoração, feliz, só lembro que foi um golaço. Se eu pudesse chutar, seria de bicicleta. Eu tinha visto um gol do Zidane pela Juventus, ficou na minha cabeça. Ele domina na entrada da área, dá um chapéu e chuta. Deve ter sido parecido”, afirmou.

Raí se impressionou ao rever final

Jogadores do São Paulo comemoram título do Mundial de 1992 - Peter Robinson/EMPICS via Getty Images - Peter Robinson/EMPICS via Getty Images
Jogadores do São Paulo comemoram título do Mundial de 1992 Imagem: Peter Robinson/EMPICS via Getty Images

Raí não é de assistir às reprises dos jogos em que esteve em campo, mas já reviu uma ou duas vezes a final do Mundial contra o Barcelona e ficou impressionado com o desempenho do Tricolor.

“Realmente era uma coisa assustadora para a época, de intensidade. Hoje a gente fala de jogo intensivo, ofensivo, marcação pressão, perde e marca, e aí que a gente percebe o quanto o Telê e aquele time estavam muito à frente da sua época”, disse o camisa 10.

“A quantidade de oportunidades que a gente tinha. 5 a 0 na Libertadores, e um cara do adversário acabou o jogo, veio me cumprimentar e falou: ‘não tem jeito, esse time é um fenômeno’. As poucas vezes que tive paciência para assistir ao jogo todo fiquei muito impressionado e orgulhoso do que a gente construiu.”

Aquele São Paulo ficou conhecido pela união do time e pelo entrosamento, méritos de Telê. Mas tinha um algo a mais: o prazer de jogar junto.

“Eu diria que um dos principais segredos era o prazer de jogar junto, de vencer juntos e o prazer de ter o jogo coletivo. Todo o mundo ali tinha suas qualidades técnicas individuais, mas o Telê falava do jogo bonito, bem jogado, o jogo coletivo. Ele passava essa paixão para a gente que nos deixava com esse prazer, esse tesão. Quando eu levantava, ia para o treinamento e tinha esse prazer”, disse.

Guardiola e Klopp existem graças a Telê

Telê Santana, na final do Mundial de 1992 - Peter Robinson - EMPICS/PA Images via Getty Images - Peter Robinson - EMPICS/PA Images via Getty Images
Telê Santana, na final do Mundial de 1992 Imagem: Peter Robinson – EMPICS/PA Images via Getty Images

Um dos motivos do sucesso estava nos treinamentos. Telê ensaiava e colocava em prática com jogos-treino. Quando tudo começou a ficar automatizado, virada uma pelava para o time titular. Eram vitórias de 12 a 0 ou 15 a 2, por exemplo.

“A expressão do time adversário no jogo-treino parava: ‘o que está acontecendo aqui?’. Volta essa coisa do futebol que levou a gente a se interessar pelo esporte, essa paixão, de criança, de pelada, de ser tão leve. Quando você pega jogadores que viraram jogadores pelo prazer de jogar, viraram profissionais, suavam a camisa, treinavam para cacete, mas depois voltava o prazer da infância de tanto que a gente conseguia fazer coisas que a gente mesmo admirava’, afirmou o camisa 10.

Para Raí, Telê é um dos responsáveis pelo futebol ofensivo, bonito e eficiente apresentado atualmente por treinadores como Pep Guardiola e Jugen Klopp. E isso tudo 30 anos atrás.

“Ele [Telê] colocava um ar de arte em tudo isso. Graças a ele, o Guardiola existe, o Klopp existe. Insistiu na época que ninguém acreditava que jogar bonito, com arte, como Sócrates também amava, para frente e para ganhar é eficiente. E ele nunca deixou de acreditar quando tudo, todos e mesmo os resultados não aconteciam. Então, obrigado, mestre Telê por fazer com que o futebol continue fazendo a gente sonhar” Raí

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