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O diálogo mais importante da vida de Walce da Silva Costa Filho, 24 anos, jogador de futebol do São Paulo emprestado ao Juventude, aconteceu no último dia 21 de janeiro, durante partida contra o Internacional, mas foi silencioso.
Celso Roth, a 40 metros de distância, fez gestos frenéticos com as duas mãos. Era o chamado. Walce olhou para os lados, olhou para o treinador e colocou os dedos indicadores no peito. “Eu?”. Roth respondeu agitando o polegar direito para cima e para baixo. Sim, era ele o escolhido para entrar no lugar de Felipe Carvalho.
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“Senti um frio na barriga. A adrenalina subiu. Corri, ouvi o que o Celso falou e entrei em campo com uma alegria imensa. A maior felicidade dos últimos tempos.
O que há de tão importante em um reserva ser chamado para jogar?
Walce estava de volta após 1105 dias afastado e três operações nos ligamentos cruzados do joelho direito. 1105 dias de dores físicas e espirituais, incertezas quanto ao futuro, questionamento da própria fé e, enfim, reconciliação. Hoje, acredita que Deus é o seu principal parceiro na recuperação.
Com seis minutos em campo, aos 19 do segundo tempo, Walce fez uma falta em Alemão e levou cartão amarelo.
“Quando ele dominou a bola, achei que, se passasse por mim, iria ficar direto na cara de nosso goleiro. Só eu podia impedir. Fiz a falta. Depois, em casa, vi o lance e percebi que estava no meio de campo, conta Walce.
É o início da readaptação. “Perdi um pouco a noção de tempo e espaço, a leitura de jogo, mas já está melhorando. Vou voltar ao que era antes, tenho certeza”.
O estalo
O “antes” de Walce tem data específica. Em janeiro de 2020, ele era titular da seleção brasileira sub-23 que se preparava para o torneio Pré Olímpico. Era capitão, como tinha sido em muitas conquistas na base do São Paulo, clube que o formou. Tinha cinco jogos como profissional, e uma oferta de 5,5 milhões de euros do Bragantino, prontamente recusada.
O seu mundo não tinha teto. Todo sonho era possível. A seleção principal? Antony, seu companheiro daquele time, chegou dois anos depois à Copa do Catar. Talvez fosse esse o sonho de Walce naquele dia 12 de janeiro. No treino, recebeu colete de titular.
A atividade corria normalmente. A bola saiu fazendo uma curva em direção à lateral. Walce tinha pressa. Queria a bola em jogo. Queria impedir que ela saísse.
“Corri e dei um pequeno salto. Acertei a bola e cai com todo o peso do meu corpo sobre o joelho. Escutei nitidamente dois barulhos. O da torcida, que já percebeu que era grave e o estalo. Você não faz ideia como foi alto. Eu caí e tive certeza que a minha perna tinha quebrado no meio ou em três pedaços.”
E a dor?
“Cara, é difícil explicar. É impossível explicar. Muito forte, o choro vem junto com a incerteza. Na hora, pensei que tudo ia acabar, que não jogaria mais”.
O pensamento que passou a acompanhá-lo. A primeira cirurgia foi dia depois, no 21 de janeiro.
“Pensava por que Deus fez isso comigo, se eu sempre conquistei minhas coisas sem pisar em ninguém, apenas com trabalho e disciplina. Por que o justo precisa sofrer?”,
O tratamento, dividido entre o Centro de Treinamentos do São Paulo e em casa, contava com ajuda do irmão Walber, que havia se formado em fisioterapia.
Na fase mais dificil, ficava imobilizado na cama enfrentando o constrangimento por usar penico e precisando de ajuda para tomar banho.
O joelho inchou muito e o exercício para dobrar a perna era um suplício medieval. Walce já não pensava em futebol. A meta era bem mais simples. “Queria adquirir algum tipo de movimento apenas para poder sentar em uma cadeira, colocar o computador na mesa e caçar algum emprego para ganhar a vida. Nada mais. Nada podia piorar”.
Podia.
Covid e novas cirurgias
Em outubro, Walce percebeu que o joelho estava ficando cada vez mais inchado e que a perna não ganhava musculação, estava atrofiada. Pediu que os médicos fizessem uma ressonância magnética. O resultado foi o que ele esperava e temia. O enxerto feito no joelho havia sofrido rejeição e uma nova operação era necessária.
Walce havia feito tratamento diário no clube e também em casa. A partir de março, com a pandemia da Covid-19 crescendo, apenas em casa.
“Para, você vai matar o menino”, gritava a mãe, quando Walce berrava de dor. “No CT, não tem mãe implorando, o exercício vai até o final, não tem choro”.
Em setembro, Walce tinha sido infectado pela Covid. Ficou 15 dias isolado e foi então que sentiu o joelho inchado e dores de infecção.
A incredulidade aumentou em junho de 2021, quando todo o processo se repetiu: joelho inchado, perna atrofiada, nova ressonância, insuficiência de enxerto e nova operação.
Jogar futebol era lembrança de um passado e incerteza de um futuro. Por pouco, essa incerteza não se transformava, por completo. Certeza de que a carreira havia acabado.
O sinal
Walce recorreu à religião. Decidiu que precisava ter Deus ao lado, e encontrou forças para encarar o tratamento com mais leveza. Sua recuperação serviria de exemplo para outros que passassem pela mesma situação.
Um dia, fez um pedido a Deus. Queria uma hora de sono antes da fisioterapia do dia seguinte. Novamente sua perna seria dobrada, à força, com uso de um aparelho. E com muita dor
O pedido foi negado. Walce foi até o CT do São Paulo sw mau humor. “Faça o que tem de fazer, que eu quero ir embora logo, disse ao fisioterapeuta.
Deitou na cama e colocou uma toalha na boca para não gritar. O irmão estava em cima dele, para ajudar na imobilização.
Um, dois, três minutos e nada.
Walce se irritou, tirou a toalha da boca e reclamou. “Vamos logo, tenho pressa”.
O fisioterapeuta riu. “Já foi, já dobrei a sua perna”.
Ele só acreditou quando o irmão confirmou. “Então faz de novo”. Tanto insistiu que o fisioterapeuta aceitou. E a dor voltou, de forma intensa.
Walce entendeu que Deus havia lhe dado um sinal. Que os exercícios poderiam ser feitos, mas que dependia só dele. Ao sair do CT, viu uma mulher empurrando um jovem de sua idade em uma cadeira de rodas. Ele não tinha uma perna.
“Ele nunca mais sentiria dor naquela perna. A dor que eu sentia era um privilégio, era algo que muitos gostariam de sentir”.
As horas de fisioterapia começaram a passar como minutos. O clima era leve, a confiança no futuro voltou. Uma decisão havia sido tomada. “Eu queria ser conhecido como o menino que não desistiu de seu sonho e que minha história seria combustível para outros. E deixar claro que só consegui quando percebi que sozinho eu não conseguiria, que a vitória veio quando tive Deus como parceiro”.
Em agosto do ano passado, ainda no São Paulo, Walce pediu para participar dos treinamentos. O técnico Rogério Ceni permitiu. Foi um reaprendizado. “Eu estava aprendendo os movimentos de novo, recordando o melhor posicionamento. Até fazia o de antes, mas sem a qualidade e intensidade.”
Reuniu, então, os companheiros e fez um pedido. “Eu sei que vocês estão tirando o pé, mas eu preciso que dividam todas comigo. Preciso ver mesmo se estou pronto para jogar”
Estava, mas sem ritmo nenhum. Percebeu quando Rogério o colocou em alguns minutos em dois jogos-treinos.
Veio o convite do Juventude.
Walce procurou Rogério.
“Ele me disse que eu tenho capacidade para jogar no São Paulo, mas que preciso de situações concretas de jogo. Tomar decisões, enfrentar atacantes, participar de jogadas. E que eu poderia tem mais tempo de jogo em outro time”.
O contrato com o São Paulo foi renovado por um ano e com uma cláusula que serve como incentivo. Se Walce fizer 12 jogos durante o ano, ele será estendido até o final de 2024.
Não é uma meta difícil. Ele já participou de jogos contra Ypiranga de Erechim, Grêmio e Inter. Faltam outros nove.
Walce não tem pressa.
“O meu futuro está sendo jogado agora. Toda minha dedicação é ao Juventude, que me acolheu. Não estou pensando no ano que vem, no São Paulo, em nada. É jogar bem aqui, tentar ser titular e fazer de tudo para que o Juventude volte para a Série A.”