O telefone de Claudio Bravo, goleiro e capitão da seleção chilena, tocou no domingo com uma ligação vinda do Brasil. Amigo do jogador do Barcelona, Roberto Rojas fez o contato direto de São Paulo, onde vive com a esposa Viviane Bruno, para parabenizá-lo pelo título espanhol, da Copa do Rei e da Liga dos Campeões – os dois últimos na reserva de Ter Stegen, em revezamento proposto por Luis Enrique. Na conversa, Bravo falou das expectativas para a estreia com o Equador na Copa América, nesta quinta-feira, às 20h30, no estádio Nacional, em Santiago, e ouviu que Rojas evolui gradativamente em sua recuperação clínica. Eles são amigos de longa data.
Na primeira vez em que abriu sua casa para uma reportagem desde que passou por duas cirurgias no Hospital Albert Einstein, em janeiro e março, o ex-goleiro Rojas, hoje com 57 anos, analisou as chances da equipe para o torneio e mostrou suas cicatrizes. No corpo e na mente.
Duas delas são visíveis apenas quando a camiseta é levantada: na altura do tórax, ele carrega a marca da retirada do lobo médio do pulmão direito, em procedimento realizado em janeiro, após uma torção do órgão que ocorreu enquanto ele dormia na véspera do Natal – situação tão incomum que, hoje, virou tema de estudos em Londres; a segunda, na barriga, indica o transplante de fígado, feito após cinco anos de espera na fila de doações, em consequência de uma Hepatite C adquirida ainda quando era atleta.
Após muitos dias de internações, complicações e risco de morte, Rojas admite que achou que “ia para o andar de cima”. Recuperando-se, o Condor agora festeja a volta por cima e faz planos para o futuro: quer voltar a trabalhar no São Paulo, de onde saiu em 2005, depois de uma década como preparador de goleiros e uma breve experiência como treinador.
Os mais jovens talvez não saibam, mas Rojas é um caso raro de atleta que foi banido do esporte. Em 1989, num jogo do Chile contra o Brasil no Maracanã, pelas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1990, o ex-goleiro simulou ter sido atingido por um rojão. A farsa resultou no banimento de Rojas, e essa é sua principal cicatriz da carreira.
Até hoje, ao falar do assunto, seus olhos mareiam, principalmente ao citar que aqueles que lhe deram pena perpétua no futebol, como o atual presidente da Fifa, Joseph Blatter, na época secretário-geral da entidade, agora estão atolados em suspeitas de esquemas de corrupção.
– Hoje posso olhar no olho. Já aqueles que não me olharam, hoje estão aí na porta do inferno. Não estão? Senhor Blatter, (João) Havelange e (Ricardo) Teixeira. Os que me condenaram estão na porta do inferno. Não desejo que estejam lá porque é duro estar. Mas é justiça, não é? – questiona ele, que foi banido do futebol pela Fifa em 1989, recebendo anistia em 2001, aos 42 anos.
– E que paguem com eu paguei! Porque eu já paguei – diz, com a voz embargada.
O CÉU PODE ESPERAR
É comum a quem supera problemas de saúde apontar qual foi “o pior momento”. Roberto Rojas sabe qual foi. Durante o pós-operatório da cirurgia para a retirada do lobo médio do pulmão, teve de usar uma sonda nasogástrica ligando o nariz ao estômago por conta de um inchaço abdominal causado pelo excesso de morfina no corpo – foram mais de 30 aplicações.
Isso foi no último mês de janeiro, e o ex-goleiro, que vinha frequentando o Hospital Albert Einstein desde dezembro, fez menção de arrancar a sonda por conta da dor insuportável. Um gesto do médico o convenceu a lutar:
– Ele chorou.
Os problemas do ex-jogador começaram em 2011, com o diagnóstico da hepatite C, uma inflamação no fígado causada por um vírus, doença que pode ser adquirida por contato com sangue ou transfusões. A suspeita de Rojas é a de ter sido contagiado em uma cirurgia de vesícula no fim dos anos 1990.
Enquanto o fígado de Rojas lentamente se destruía, ele entrou na fila da Central de Transplantes da Secretaria de Saúde. Foram cinco anos de espera. E justamente enquanto se recuperava da primeira cirurgia do ano, ainda em março, o telefone tocou para que voltasse ao hospital para realizar o processo.
São-paulino, Rojas passou a sofrer com as brincadeiras dos médicos, que diziam que ele receberia um órgão de um corintiano ou palmeirense. O procedimento foi realizado com sucesso e, após alguns dias, o chileno já estava em casa com um fígado novo.
– Fiquei cinco anos em tratamento, e o momento, enfim, chegou. Amadureci muito como pessoa. Tem dois tipos de pessoas, a que no momento difícil fica mais forte, mas ao mesmo tempo mais sensível, e a que perde a sensibilidade e fica para baixo. Isso não é bom. Sempre superei os momentos difíceis, dentro e fora da profissão. A doença é complicada, mas tem de lutar.
O nome do doador ele não sabe. Nem para que clube torcia. E nem mesmo se era nascido no Brasil – o que o faria um pouquinho brasileiro. Magro, com 11 quilos a menos do que o ideal, ele se recupera a base de muitos remédios e alimentação controlada. Quinzenalmente, volta ao hospital para drenar o líquido ascítico do abdômen, nas únicas vezes em que coloca os pés na rua.
– Hoje a rotina é descansar, se alimentar, mas é uma recuperação lenta. Espero em três ou quatro meses ter uma vida mais sadia. Não é fácil. Eu gostaria de estar em um churrasco, mas tem de ir aos poucos. Esperei cinco anos (pelo transplante), não vou até o final? Hoje tomo muita medicação, mas depois vai diminuindo, já tem diminuído. Os médicos dizem que não posso descuidar. No começo só andava de máscara, nem meus filhos podiam me ver. Aos poucos vão liberando as coisas, mas estou me achando muito bem – disse, sentado em seu jardim.
O INFERNO É AQUI
Em 1989, o brasileiro João Havelange era presidente da Fifa, Joseph Blatter ocupava a função de secretário-geral da entidade, e Ricardo Teixeira, genro de Havelange, havia sido empossado como presidente da CBF.
É a esse trio que Rojas, 25 anos depois dos fatos ocorridos, direciona a sua mágoa por ter recebido uma punição com duração indeterminada, o que não lhe permitiu sonhar com uma volta por cima. Sem entrar em detalhes, admite que sofreu depressão.
Em 3 de setembro, o Brasil vencia o Chile por 1 a 0 com gol de Careca. Para voltar à Copa do Mundo após a ausência em 1986, só uma vitória interessava ao Chile. Ou uma desclassificação do Brasil no tapetão. Aos 24 minutos do segundo tempo, o goleiro se aproveitou de um sinalizador atirado em campo para simular que havia sido atingido. Da luva, tirou um bisturi e cortou o próprio rosto. Saiu carregado de campo como se tivesse sido atingido por um morteiro atirado pelos torcedores brasileiros. A farsa interrompeu o jogo, mas a investigação da Fifa escancarou o escândalo. Rojas confessou o ato. E foi banido para sempre do futebol.
Por terem tirado o time de campo, o vice-capitão Fernando Astengo e o técnico Orlando Aravena também pegaram gancho, mas de cinco anos. Um médico e um dirigente também foram punidos, com a seleção chilena sendo impedida de participar das eliminatórias para o Mundial de 1994. Rojas garante que nunca escondeu nada sobre o caso, que ele chama de “erro individual”
– Na época teve um relatório violento da Fifa onde relatei tudo. Não ficou nada para trás. Nunca culpei as pessoas, foi erro individual. Hoje penso que se tivesse sido um erro coletivo, as coisas poderiam ter sido diferentes para mim. Mas dou graças a Deus que tenha sido assim, porque não prejudiquei ninguém mais. Óbvio que tinha uma geração boa na época, mas que já estava acabando. E o Chile precisava entrar na linha para chegar ao estágio que chegou hoje, de planejamento, organização, trabalho, seriedade e sem roubo. A chacoalhada foi assimilada.
Por muito tempo, o nome de Rojas causou vergonha internacional a chilenos. Aos poucos, eles foram perdoando o ídolo, que seguiu no Brasil trabalhando com o técnico Telê Santana no São Paulo a partir de 1994, como preparador de goleiros. Em 2013, milhares lotaram o estádio Nacional para um jogo de despedida organizado pelo sindicato dos jogadores chilenos.
– O povo chileno é solidário, independentemente do que você fez. Óbvio que tem coisas que nunca vão perdoar, como o golpe militar, aquele processo atroz (em 1973) que nem se compara com o que passei. Através do tempo, entenderam que era só pela área do esporte, não pessoal.
Por conta das internações recentes e da luta pela sobrevivência, ele admite que reviveu o filme de seus 57 anos nos dias em que passou no hospital, quando refletiu sobre muitos pontos da vida.
– Outro dia escutei Muricy Ramalho falando que quando esteve na UTI passou um filme da vida. Já estive muitas vezes na UTI. Pensei muitas vezes que ia para o andar de cima, mas alguma coisa me segurava, com certeza a mão de Deus. Na UTI passa um filme: “O que estou fazendo aqui?” Você se julga, se perdoa e continua no caminho correto. Depende de você continuar lutando e não se entregar. É duro. Mas nada é por acaso –diz o chileno.
Para os médicos, o fato de Rojas ter sido um atleta de alta performance facilita sua recuperação clínica. Para ele, a coragem que teve durante toda a sua vida, e principalmente no pior momento de sua carreira, fortaleceram a sua personalidade.
– O único jeito de sair do caminho da escuridão é assumindo seus erros. Óbvio que algumas portas que estavam abertas com o tempo se fecham, mas o tempo ajudou a abri-las de forma diferente. Primeiro familiarmente, com os filhos, mulher. Eu queria continuar cobrando meus filhos (Paulo e Paz) como antes do problema que tive, eu tinha de recuperar isso. E a vida vai caminhando. Hoje posso olhar no olho. Já aqueles que não me olharam (no olho), hoje estão aí na porta do inferno. Não estão? Senhor Blatter, (João) Havelange e (Ricardo) Teixeira. Os que me condenaram estão na porta do inferno. Não desejo que estejam lá porque é duro estar. Mas é justiça, não é?
Atento aos noticiários, Rojas torce por um tratamento linha dura aos dirigentes investigados por corrupção, em denúncias que se intensificaram nas últimas semanas. Blatter, por exemplo, abrirá mão da presidência da Fifa, que ocupa há 17 anos, por conta dos escândalos da entidade.
– Quem comete um erro tem de ser punido, mas a punição tem de ser por um tempo determinado. Para que a pessoa possa mostrar, na mesma área, que cometeu um erro, mas que não é mau caráter. Essa turma não me permitiu isso. Hoje está se fazendo justiça. Estão passando por um processo tão ou mais duro que o meu. Não quero que sejam castigados, só que se faça justiça na medida de suas responsabilidades. Como fizeram comigo – diz Rojas.
– Foram totalmente cegos. Não pensaram no atleta, na pessoa, no chefe de família, no marido, na mulher, na mãe, nos irmãos (com voz de choro). Então, que se faça justiça. E que paguem, como eu já paguei. Porque eu já paguei. Foi uma crueldade muito grande. Se olhar a história do futebol, não aconteceu com ninguém. Maradona foi pego duas vezes (no doping) com cocaína. Foi pego uma vez (1991) e suspenso por um ano. Depois, de novo no Mundial (1994), e mais um ano. E eu, que nunca consumi droga? Foi uma injustiça muito grande o que fizeram comigo – completa o chileno.
COPA AMÉRICA
Revelado pelo Deportes Aviación, clube da força aérea chilena que leva um condor no distintivo – daí o apelido “Condor” –, o goleiro chegou ao tradicional Colo Colo em 1981, onde foi bicampeão chileno (1983 e 1986). Ainda em 1982, assumiu a meta da seleção logo após a Copa da Espanha.
Tanto no clube como na seleção, o ano de 1987 foi bastante especial. Pela Taça Libertadores, fez grandes jogos contra o São Paulo na primeira fase. Já na Copa América, levou o Chile ao seu quarto vice-campeonato – antes, o país já havia ficado em segundo nas edições de 1955, 1956 e 1979.
Com Rojas em Buenos Aires, o Chile passou fácil pela Venezuela (3 a 1) e ainda mais fácil pelo Brasil, em um histórico 4 a 0, em jogo que pegou até pensamento. Na semifinal, passou pela Colômbia de Higuita e Valderrama, com um 2 a 1. O título, porém, ficou com o Uruguai após um magro 1 a 0.
A atuação contra o Brasil, que tinha Ricardo Rocha, Raí, Muller, Careca & Cia., é apontada como a sua preferida na competição, que disputou ainda em 1983 e 1989.
– Foi um dos meus jogos inesquecíveis. Quando chegam dez a 15 bolas no jogo, você aparece muito. E não eram bolas normais. Lembro que Muller, Raí e grandes jogadores não tiveram a chance de fazer o gol. Eu estava neste momento. Em Copa América, foi meu melhor jogo.
Agora com o ofensivo Jorge Sampaoli à beira do campo, ele torce para que o Chile vença o torneio pela primeira vez. Mesmo acreditando que a equipe tem sérios problemas na defesa.
– O time vai chegar em um bom nível. Se jogar como jogou a Copa do Mundo, coletivamente, porque não teve uma grande individualidade, pode chegar à final. Eu, como chileno, espero que ganhe. E o fator casa pesa muito nesta hora. Este grupo de jogadores vem trabalhando junto desde o juvenil. E o técnico é parecido com Marcelo Bielsa, me agrada o estilo dele, mas óbvio que corremos riscos. O Chile tem problema na zaga, não temos altura, os jogadores não são muito fortes fisicamente, são baixos para o padrão de hoje e é uma zaga relativamente lenta, mas. do meio para frente. tem bons jogadores que podem decidir – diz o ex-goleiro.
Jorge Valdivia, jogador que divide opiniões no Palmeiras e também no seu país natal, é uma das estrelas da equipe.
Mas, para Rojas, o meia ainda não tem status de ídolo consolidado dentro do Chile.
– Não tenho seguido a carreira dele no Chile assim como um ídolo. Tem muitos anos que saiu do Colo Colo. Não sei se é ídolo como Alexis Sanchez, Arturo Vidal e Claudio Bravo. Acho que Valdivia não os alcança, eles estão em um nível muito superior. Isso não quer dizer que ele não tenha condições de ser no futuro, ninguém sabe. Valdivia não foi titular no Mundial. Nos últimos tempos vem tendo altos e baixos, gera insegurança para o técnico e para o time. É determinante tecnicamente, mas ainda falta alguma coisa para ser um jogador um pouco mais completo. Falta algo a mais para ser ídolo – diz.
SÃO PAULO
Rojas se tornou um torcedor são-paulino. Afinal, além de ter sido o último time em que atuou, foi o Tricolor quem o abraço no momento mais complicado da carreira.
Após o destaque pelo Colo Colo e pela seleção em 1987, desembarcou no São Paulo naquele ano para viver o que seria o seu último contrato. Após meses de adaptação, ganhou a posição de Gilmar Rinaldi e mostrou seu talento ao técnico Cilinho. O idioma, ele admite hoje, foi uma grande barreira.
– Quando cheguei, de setembro até dezembro a única coisa que eu queria era voltar para o Chile, tinha saudades até do gato que nunca tive. Você sai de um país pequeno e chega em um com as dimensões do Brasil achando que é igual, mas não é. Às vezes você quer se expressar, mas são limitadas as suas palavras. Hoje é diferente, todos estão mais preparados, mas naquela época eu ficava fechadão para não cometer gafes. Aí fui de férias para o Chile, voltei e já treinei no nível do time – diz Rojas, que está animado com a chegada do colombiano Osorio ao São Paulo.
– Vi o Juan Carlos Osorio falando na televisão. Ele tem só uma semana aqui, mas está indo bem. É inteligente – elogia.
Em 1989, após o contrato com o clube paulista, Rojas tinha planos de partir para a Europa, onde poderia ser envolvido em uma troca com o meia Pita para atuar pelo Racing Club de Strasbourg, hoje na quarta divisão francesa. O banimento da Fifa, porém, mudou a rota. Após experiências como comentarista de TV e rádio, recebeu de Telê Santana a chance para, em 1994, iniciar um trabalho de treinador de goleiros, acompanhando boa parte da trajetória de Rogério Ceni.
– Quando Rogério estava nos aspirantes com o Muricy já estava em um nível alto, faltava pouco para passar o Zetti. Lembro que uma vez tive uma conversa de amigo com o Zetti e disse que era hora de ele procurar novos caminhos, porque a vida dele no clube seria mais curta do que ele estava pensando. Rogério estava querendo dar um passo a mais, faltava só a chance acontecer – afirma Rojas.
– Hoje a longevidade dele é impressionante. Tudo isso pelo profissionalismo, capacidade técnica e pelos cuidados que ele tem. É um dos goleiros mais completos –completa .
A história de Rojas no São Paulo durou até 2005, quando foi dispensado. Dois anos antes, em 2003, comandou a equipe ao lado de Milton Cruz por oito meses, recolocando o clube na disputa da Taça Libertadores após uma década de ausência. Se tem um sonho hoje? Voltar ao Tricolor.
– Quero voltar a trabalhar, a ter uma vida mais ativa. Tenho 57 anos, não vou querer uma vida de 30, mas há coisas no futebol que posso fazer. Espero que isso aconteça no São Paulo.
Desejo-lhe muita saúde e paz.