O reencontro com o São Paulo pelos olhos de Rogério Ceni

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UOL

Bruno Grossi

Diego Lugano define Rogério Ceni como “uma das pessoas mais competitivas e sérias” do futebol. Isso explica a dedicação do técnico em ressaltar o quanto ter deixado o Castelão ontem com uma vitória para o Fortaleza seria importante. Explica porque, pela primeira vez na vida, Ceni reagiu a um gol do São Paulo com um xingamento raivoso. Ninguém duvida desse seu profissionalismo. Mas os olhos também falaram pelo ex-goleiro nos últimos dias.

Ceni começou a responder sobre o reencontro com o São Paulo há oito dias. Estava frustrado com a derrota do Fortaleza por 1 a 0 para o Botafogo, no Engenhão. Seu time havia jogado melhor e tudo se tornou ainda mais revoltante pelo pênalti ignorado pela arbitragem mesmo com os avisos da equipe de vídeo. O treinador se recompôs durante a coletiva e deu início à série de respostas respeitosas e profissionais sobre o clube onde se tornou ídolo incontestável.

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A semifinal da Copa do Nordeste contra o Santa Cruz, na última quinta-feira, era tudo o que Ceni queria. É como o estudante que arruma outras tarefas antes de terminar a lição principal. O técnico pedia foco na decisão, lembrava que só poderia pensar no São Paulo a partir de sexta-feira, mas já pensava – e como – na noite de domingo. Seus olhos já miravam adiante.

Os jogadores mais inteiros fisicamente, os mais técnicos, foram guardados para enfrentar o São Paulo. Tentou-se ao máximo regularizar o recém-chegado André Luis para reforçar o time. Claro que para tentar equiparar forças com um dos melhores elencos do Campeonato Brasileiro. Mas também era uma forma de provar que o maior desejo de Ceni para ontem era fazer o Fortaleza, sua nova casa, vencer.

O Santa Cruz poderia até dar um gostinho de São Paulo, mas deixou o uniforme tricolor, semelhante ao do time do Morumbi, no Recife. E Rogério Ceni, que andava mais calmo nos primeiros meses do ano, se apresentou extremamente pilhado na última quinta. Abriu mão até da camisa social para tentar suportar melhor o calor cearense. Jogou junto como nunca, ignorando os limites da área técnica.

Até quem está acostumado a cobrir os jogos do Fortaleza se surpreendeu. A comissão técnica do Santa Cruz, então, ficou alucinada. Em certo momento da partida, cinco integrantes estavam de pé reclamando enfurecidamente com o quarto árbitro, enquanto Ceni praticamente entrava em campo para indicar a melhor jogada para seus atletas.

Na sexta, a vaga na final da Copa do Nordeste o deixou mais em paz, livre para pensar, finalmente, 100% no São Paulo. Ceni fez longa reunião com a comissão técnica para debater o treino do dia e como já preparar a equipe que enfrentaria seu ex-clube. Antes, recebeu a reportagem do UOL Esporte em seu escritório no CT Ribamar Bezerra e, com os olhos brilhando, relembrou feitos históricos e projetou o futuro no Morumbi.

O celular de Ceni trabalhou tanto quanto ele nos últimos dias. Mensagens infindáveis de são-paulinos aflitos, que não sabiam como ou para quem torcer no domingo. Até na família do técnico houve quem ficasse em dúvida. Ele se sente abraçado por quem pensou, mesmo que provisoriamente, em apoiar o Fortaleza no Castelão. Mas fez questão de dizer que os indecisos não abandonassem o time do coração.

A delegação do São Paulo chegou na madrugada de sexta para sábado na capital cearense. Ceni nem sequer cogitou uma visita antes da partida. Não era hora, por mais que tantos amigos estivessem por perto. Os olhos, mais uma vez, mostravam o quanto seria bom um reencontro sem compromisso com essas pessoas queridas, ao mesmo tempo em que exibiam a obsessão por um trabalho perfeito para o jogo da quarta rodada do Brasileirão.

O fato de as torcidas de Fortaleza e São Paulo entrarem em comunhão desde a chegada de Ceni ao Leão do Pici tornou o impensável embate menos desconfortável. Os torcedores dividiram a ansiedade na semana passada, viram juntos os times desembarcando no Castelão e, nas arquibancadas, atingiram a apoteose com as homenagens ao ex-goleiro e agora treinador.

Ceni desceu do ônibus do Fortaleza com passos decididos, olhando rapidamente para os lados, sorrindo e acenando para quem gritava sem nenhum controle pelo “Mito”. Era como se os donos da casa quisessem mostrar aos são-paulinos o quanto amam seu novo ídolo. A impressão se tornou certeza quando os mosaicos preparados pelo Fortaleza ganharam forma.

O primeiro, mais modesto, ganhou Ceni pelo significado. “Gratidão”, segundo ele, é uma palavra que pode resumir bem a relação construída com a equipe cearense. Ceni escolheu o Fortaleza para recomeçar a carreira de técnico. E foi abraçado. Tem respaldo para dar ideias e mudar o clube por completo. Ele se orgulha de ser ouvido, mesmo que não seja possível atendê-lo, na busca por tornar o Fortaleza mais profissional.

Mas como um pai rígido na educação do filho, que, surpreendido por um desenho singelo, é acometido por lágrimas, Ceni entregou pelos olhos novamente o quão especial foi a noite de domingo. Seu profissionalismo é louvável, mas o olhar marejado diante do grandioso mosaico 3D da torcida do Fortaleza também deve ser usado para defini-lo. Bem como os cumprimentos cuidadosos, um a um, como cada atleta do São Paulo no banco de reservas. Como a atenção dada a Tiago Volpi, que o tem como referência, no fim da partida.

Durante a partida, Ceni repetiu a pilha mostrada contra o Santa Cruz. Percorreu a área técnica de ponta a ponta, pisou sobre a linha lateral e chegou até a ajudar seus jogadores a marcarem Antony em um contra-ataque do São Paulo no primeiro tempo. Quarto árbitro e bandeirinha também sofreram com as intermináveis e intensas reclamações.

O momento mais peculiar, obviamente, foi o gol são-paulino. Pela primeira vez, Ceni não pôde vibrar. Não pôde e nem pensou nessa hipótese, como comemoraria intensamente se o Fortaleza marcasse. “Vai tomar no c…”, berrou, quando Hernanes abriu o placar. O Fortaleza havia sido superior na maior parte do confronto, levava perigo a Volpi, mas de repente viu tudo ruir.

Para quem tem o futebol como lazer, o gol pode ser explicado pelo escorregão de Roger Carvalho, pela dividida que Felipe perdeu para Hudson no meio de campo. Mas para os olhos clínicos de quem precisa minimizar os erros de um time limitado, há uma outra explicação. Gabriel Dias, de repente, saiu do roteiro planejado. Deixou de valorizar a posse de bola e forçou um lançamento para a área, que dificilmente culminaria em algo. O São Paulo rebateu, ganhou na força e armou o contra-ataque com técnica para balançar as redes.

Todos esses detalhes, atribuídos ao cansaço do time, foram analisados, destrinchados após a partida. É o que justifica o tempo que Ceni demorou para chegar à sala de coletiva do Castelão. Já mais calmo, de banho tomado e uniforme do Fortaleza, manteve o tom de voz baixo, sereno. Agradeceu pela festa “belíssima”, lamentou a derrota e seguiu com o cuidado para externar o respeito pelos clubes envolvidos.

Já nas últimas horas do Dia das Mães, Ceni deixou os olhos falarem uma vez mais. Ao fim de uma resposta técnica, mudou o assunto sem rodeios. Afinal, o dia 12 de maio sempre será lembrado por ele como o aniversário da própria mãe, Hertha, que morreu em agosto de 1993, muito antes das glórias que o filho alcançaria. A data neste ano coincidiu com o Dia das Mães. O que o fez dedicar um dia tão repleto de gratidão à memória dela. E também à saúde do pai Eurydes, que nesta quinta-feira poderá celebrar mais um ano de vida.