Acordo com o São Paulo para evitar suspensões após clássico gera mal-estar no TJD

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O recente acordo estabelecido com o São Paulo após o último Choque-Rei gerou mal-estar entre membros do Tribunal de Justiça Desportiva-SP (TJD-SP). O trato, na prática, evitou prováveis suspensões aos atletas envolvidos no caso durante a reta final do Campeonato Paulista, já que o clube pagou R$ 205 mil para não ir a julgamento.

O presidente Julio Casares, o diretor de futebol Carlos Belmonte, o diretor adjunto Fernando Bracalle Ambrogi, conhecido como Chapecó, o auxiliar técnico Estéphano Djian e os atletas Jonathan Calleri, Rafinha e Wellington Rato foram denunciados por ofensas ao árbitro Matheus Delgado Candançan após o empate por 1 a 1 contra o Palmeiras, no Morumbi, pelo Paulistão. O grupo, porém, não chegou a ser julgado.

O caso de Belmonte foi mais grave, já que o dirigente se referiu ao técnico palmeirense Abel Ferreira como “português de m****”, no túnel que dá acesso ao vestiário da arbitragem do Estádio do Morumbi. O ato não foi relatado em súmula, mas acabou registrado em vídeo.

Dentro do acordo estabelecido, Belmonte gravou um pedido de desculpas pela ofensa, pagou uma multa de R$ 50 mil e ficou proibido de comparecer aos jogos do São Paulo até o final do Paulistão. A equipe comandada por Thiago Carpini acabou eliminada nas quartas de final após perder nos pênaltis para o Novorizontino, no Morumbi.

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O acordo homologado entre o São Paulo e o TJD-SP gerou mal-estar interno entre procuradores e auditores. O incômodo se deve ao fato de o procurador-geral Wilson Marqueti Júnior ter conversado diretamente com o clube antes mesmo de a denúncia ser formalmente oferecida e também pelo trato feito em relação a Carlos Belmonte, visto como irregular.

Quando uma denúncia é encaminhada pelo departamento de competições da Federação Paulista de Futebol (FPF) para o TJD-SP, o correto é a Secretaria do Tribunal realizar um sorteio para definir o procurador do caso, que deve ler a súmula e oferecer a acusação. No episódio envolvendo os personagens do São Paulo, não houve sorteio, e que o caso foi direcionado para o procurador Rodnei Jericó da Silva.

Mesmo com Rodnei sendo o responsável pelo caso na Comissão Disciplinar, o acordo com o São Paulo, que livrou os envolvidos de prováveis suspensões no Paulista, foi combinado diretamente entre o departamento jurídico do clube e o procurador-geral Wilson Marqueti Júnior, antes mesmo de Rodnei oferecer a denúncia oficialmente. A medida é vista como questionável do ponto de vista processual, já que o acordo foi elaborado primeiro com uma instância superior em relação à Comissão Disciplinar.

Antonio Assunção de Olim, presidente do TJD-SP e deputado estadual (Progressistas), confirmou à reportagem que o procurador-geral “fez tudo” e recebeu uma sinalização positiva para seguir com o acordo no Pleno.

“Foi feito (o acordo) e acabou. Quem fez foi o procurador (geral). O procurador (geral) fez um acordo de uma multa de R$ 205 mil. O Belmonte teria que gravar um vídeo pedindo desculpa. Foi tudo feito. O procurador fez, me ligou e falou: ‘Olha, estou fazendo um acordo. Tudo bem?’. E eu disse que tudo bem. Depois, mandou no Pleno para algum auditor assinar e acabou. Vale o acordo. Foi o que foi feito. O Marqueti fez tudo e eu dei sinal verde”, explicou Olim.

Procurado, o procurador-geral Wilson Marqueti Júnior disse que “a transação é feita pelo procurador-geral e homologada pelo auditor do pleno do TJD-SP, segundo determina o CBJD. Foi feita a denúncia pelo procurador da comissão”.

A reportagem apurou que, de fato, o procurador da comissão fez a denúncia, mas depois de o acordo já ter sido planejado entre o São Paulo e a procuradoria-geral.

Por meio de aplicativo de troca de mensagens, Marqueti respondeu a todos os questionamentos, com exceção da pergunta sobre se houve ou não sorteio para definir Rodnei Jericó da Silva como procurador do caso. Diante da falta de resposta, a reportagem ligou para o procurador-geral, mas não foi atendida.

Infração de Belmonte não prevê acordo
Todos os personagens do caso foram enquadrados no artigo 258, parágrafo 2 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), que fala em “desrespeitar os membros da equipe de arbitragem, ou reclamar desrespeitosamente contra suas decisões” e possui pena de suspensão de uma a seis partidas para atletas, membros da comissão técnica, treinador ou médico da equipe. Para qualquer outra pessoa ligada ao clube, pode haver um gancho de 15 a 180 dias.

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O dirigente Carlos Belmonte, por sua vez, também foi enquadrado no artigo 243-F do CBJD, que fala em “ofender alguém em sua honra, por fato relacionado diretamente ao desporto”, cuja pena pode variar de R$ 100,00 a R$ 100 mil e suspensão de 15 a 90 dias. Segundo a lei, esse item não prevê transação (acordo). Ou seja, o dirigente do São Paulo teria, necessariamente, que ser julgado. De acordo com o CBJD, só comportam transação as infrações previstas nos artigos 250 a 258-C e 259 a 273, (art. 80-A,1, II e III). Logo, o artigo 243-F não está englobado.

Outro ponto que gera discordância entre juristas é o artigo em que Belmonte foi enquadrado. Na visão de advogados desportivos entrevistados pela reportagem, o correto seria o dirigente ser denunciado no artigo 243-G (“praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou com deficiência”), cuja pena pode ser de R$ 100,00 a R$ 100 mil e suspensão de 120 a 360 dias.

“Se você analisar, todos que foram denunciados na súmula fizeram transação. Alguns podiam e tinham direitos, porque foram enquadrados no 258. Acontece que você só pode usar esse artigo quando a atitude da pessoa não está enquadrada em nenhuma das outras instalações. A conduta do Belmonte está claramente tipificada em outros itens, como 243-G, que não permite transação”, disse Flavio Cotrim Paneque, advogado especialista em direito desportivo.

“Essa exigência de gravar o vídeo, ao meu ver, foi desastrosa. Claro que uma retratação é sempre positiva. Agora, o que o Tribunal não pode é fazer uma confusão, um erro pueril, de confundir uma atenuante de culpabilidade com uma excludente de culpabilidade. Se retratar não torna você inimputável. Um julgamento desse repercute de forma negativa até internacionalmente. Quando o ato de desrespeito é praticado por um dirigente, é muito mais grave do ponto de vista ético e moral, porque é uma pessoa que deveria dar o exemplo de conduta ética, mas ele fez o oposto para o torcedor. Fica a mensagem que, desde que meu time tenha dinheiro, eu ofendo o quanto quiser”, complementou.

O procurador-geral Wilson Marqueti, procurado pela reportagem para falar sobre o tema, afirmou que “existe uma discussão sobre isso (transação válida para o acordo 243-F) e a jurisprudência do STJD já se firmou no sentido de autorizar”.

O argumento apresentado não convence Flavio Cotrim Paneque. “Não é porque uma decisão errada ganha eco, que ela se torna correta. Apesar de haver jurisprudência, é uma jurisprudência equivocada. Na história do Direito, tivemos várias jurisprudências que foram corrigidas. Não é imutável. Caso contrário, não haveria divergência. A discussão é se a decisão é equivocada ou não e não se já existiram casos do tipo”, declarou.

Renan Gandolfi, advogado pós-graduado em Gestão do Esporte pela Universidade de São Paulo (USP), segue linha semelhante. “Tal medida enseja questionamentos e abre um precedente jurídico para a aplicação em casos que fogem à previsão legal! A procuradoria-geral propôs tal acordo, o que, segundo melhor juízo, pode gerar uma sensação de impunidade e benefício no caso em tela. A Justiça desportiva tem como um dos pilares a celeridade e a economia processual. Entretanto, expandir a aplicação de medidas bem definidas no código abre brechas e precedentes para outros acordos serem firmados em casos não entabulados no Código Brasileiro de Justiça Desportiva”, disse.

Posicionamento dos clubes e da FPF
A Gazeta Esportiva entrou em contato com o São Paulo, que preferiu não se manifestar, por tratar o caso como encerrado. A reportagem apurou que o clube confia na legalidade do acordo estabelecido.

O Palmeiras, por sua vez, disse ver “com indignação o acordo entre São Paulo Futebol Clube e Tribunal de Justiça Desportiva (TJD) homologado no dia 12. Diante da gravidade dos fatos ocorridos após o jogo realizado em 3 de março, no Morumbi, era de se esperar que ao menos atletas e dirigentes denunciados fossem julgados; o TJD escolheu, contudo, outro caminho, criando um precedente perigoso e oferecendo à sociedade um exemplo negativo de impunidade e tolerância à violência”.

Em contato com a Gazeta Esportiva, a assessoria de imprensa da FPF disse que não responde pelo TJD-SP.

Súmula do Choque-Rei
Relatório do Assistente

Eu, assistente número 1 da partida, aos 59 minutos de jogo, chamei o árbitro para expulsar o Sr. Estéphano Kiremitdjian Neto, auxiliar técnico da equipe do São Paulo F.C, por após seu companheiro de Comissão Técnica Sr. Octávio José Bittencourt Ambrogio Kalil Ohl, treinador de goleiros da mesma equipe, ter sido advertido por mim, verbalmente realizar de forma sarcástica e irônica um gesto com a mão associado ao seu semblante significando: “Acabou de dar o seu show, agora pode voltar pro seu lugar”, ridicularizando minha atitude e procedimento recomendado nessa situação.

Observações eventuais

Informo que ao final da partida a equipe de arbitragem foi interceptada no túnel que dá acesso ao vestiário dos árbitros, por diversos dirigentes e atletas (não relacionados) do São Paulo FC.

Foram proferidas as seguintes palavras pelos dirigentes Fernando Bracalle Ambrogi, Carlos Belmonte Sobrinho, Julio César Casares: “safados, que pênalti foi esse, sem vergonhas, filhos da p***, vai tomar no **, você não vai ficar em paz, desgraçados, o Abel apitou o jogo hoje”.

Foram identificados também os atletas não relacionados para a partida: Sr. Márcio Rafael Ferreira de Souza, proferindo as seguintes palavras contra a equipe de arbitragem: “vai tomar no **, como dá um pênalti desse, safado, você nunca mais vai apitar aqui”, e o Sr. Wellington Soares da Silva, proferindo as seguintes palavras contra arbitragem: “safado, vai tomar no **, filho da ****”.

Informo ainda que foi necessária a intervenção do policiamento local com escudos, para retirada das pessoas acima mencionadas.

UOL