Memórias: A chapelaria de Marcelo no Choque-Rei

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Foto de Placar, de 8 de julho de 889 – Chou Ching Yeh

Memórias: A chapelaria de Marcelo no Choque-Rei

Com um toque magistral, aplicou um chapéu no palmeirense e, para completar a obra prima, chutou forte, inebriante, para o fundo do gol de Zetti

Véspera de Choque-Rei é momento para lembrar de um duelo histórico entre esses grandes rivais do futebol brasileiro. São Paulo e Palmeiras não é somente um jogo, uma grande rivalidade dentro das quatro linhas; ela ultrapassa os limites da razão beirando o ódio. As duas agremiações viveram ao longo de muitos anos um caso recíproco de ojeriza. A primeira grande fissura entre os dois gigantes aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial quando, reza a lenda, o São Paulo “tentou tomar” o estádio Palestra Itália do rival.

Segundo historiadores tricolores, o Mais Querido nunca teve essa pretensão. Havia, evidentemente, um clima de perseguição aqui no Brasil contra japoneses, alemães e italianos – (povos dos países que lutaram pelo Eixo na Segunda Guerra). E em fase de reestruturação, o jovem São Paulo se fundiu ao Germânia e, em janeiro de 1942, iniciou um processo de incorporação da Associação Alemã de Esportes, batizada de Deutsche Sport Club. Este clube tinha uma sede alugada no Canindé, que pertencia a um casal de italianos. A DSC, pressionada pelo governo brasileiro, optou por ser incorporada por um clube brasileiro. Corinthians e Palestra não se interessaram. Em março de 42, o Conselho Deliberativo do São Paulo votou a favor. Detalhe, tudo isso aconteceu antes que o governo de Getúlio Vargas declarasse guerra aos países do Eixo. (Palmeiras e Cruzeiro, por exemplo, chamavam-se Palestra Itália).

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Porém, a polêmica em torno dessa peleja fora de campo incluiu também lendas dos campos. Em entrevista ao livro “Os Dez Mais do Palmeiras”, de autoria de Mauro Betting, o falecido goleiro Oberdan Cattani disse: “Corinthians é adversário; São Paulo é inimigo”, em referência a esse conflito histórico. Mas essa não foi a única página beligerante do confronto. Ao longo das décadas, muito ódio foi destilado pelos dois lados (troca de jogadores, campo esburacado para evitar com que o rival comemorasse título, jejum de títulos e jogos épicos).

E o Memórias de um Gigante de hoje vai relembrar um desses jogos extraordinários. Aliás, o Choque-Rei, quiçá, é o clássico com mais jogos técnicos e memoráveis. Mas vamos lembrar do duelo pelo Campeonato Paulista de 1988, torneio que não deixou muitas saudades na nação tricolor. Além de ter sido garfado na fase final em um confronto contra o Corinthians, o São Paulo conseguiu perder, nessa mesma fase final, para o modesto time do Palmeiras, dia esse que o nosso favoritismo era tão grande que dava para contar quantos torcedores do Palestra compareceram no Morumbi. Catástrofe que deu a vaga à final para o Corinthians. Para esquecer.

Porém, nem tudo foi espinho nessa fase final, onde São Paulo, Santos, Corinthians e Palmeiras disputavam, com jogos de ida e volta, uma vaga para a final do Paulistão. Em jogo realizado no estádio Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu, o São Paulo venceu o Palmeiras por 2 a 1, com uma exibição de gala dos meninos do treinador Cilinho. Essa partida entrou para a história pelo gol antológico marcado por um garoto chamado Marcelo, atacante do time aspirante, que logo depois foi embora para a Grécia e não mais voltar. E é esse o jogo que o Memórias traz para apimentar o Choque-Rei do próximo domingo.

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O jovem Ney e o zagueiro palmeirense Toninho

Voa, Nenê! Marcelo, abra uma chapelaria, garoto!

Após empatar com o Corinthians na primeira rodada da fase final do Paulista-88 em 2 a 2 (com a “ajuda” de Rojas) e na sequencia vencer o Santos por 2 a 0, o São Paulo, desfalcado de Raí – com uma fissura no tornozelo – subia ao gramado do estádio da municipalidade na belíssima tarde do dia 3 de julho de 1988 para enfrentar o Palmeiras. E pelas escalações das duas equipes, percebia-se que o alviverde era um time mais experiente, porém os garotos são-paulinos eram mais talentosos – isso em uma época que nem existia o belo CT de Cotia, a fábrica de craques.

A tarde ensolarada levou 48.086 pagantes ao lendário estádio paulista. Com arbitragem de Ilton José da Costa, o Tricolor de Cilinho foi a campo com: Rojas; Zé Teodoro, Adílson, Ivan e Ronaldo; Bernardo, Renatinho e Lê; Anílton, Ney e Edvaldo. O Palestra, do falecido treinador Ênio Andrade, estava escalado com Zetti; Jairo, Márcio, Nenê e Denys; Lino, Gérson Caçapa e Célio; Tato, Rodinaldo e Ditinho Souza.

A garotada tricolor ficou preocupada quando aos seis minutos de jogo o treinador Cilinho foi expulso do banco de reservas. Com cinco jogadores tirados da equipe de aspirantes – Ivan, Ronaldo, Renatinho, Ney e o estreante Anílton -, o São Paulo poderia perturbar-se. Afinal, o mestre não estava próximo para auxiliá-los.

Só que o Tricolor não se limitava aos garotos. Os mais experientes ajudaram a ditar o ritmo do passeio. Assim, Bernardo se lançou ao ataque, aprontou o maior fuzuê na área inimiga e sofreu pênalti. “Senti que era o momento de comandar a molecada”, comentou o volante. Com a tranquilidade digna de seus 26 anos, o ponta Edvaldo pregou uma peça no goleiro Zetti: palmeirense num canto, bola no outro. Era a deixa para início da festa dos torcedores são-paulinos.

Após o término do primeiro tempo, Cilinho, que assistia ao jogo na cabine de imprensa do Pacaembu, desceu ao vestiário e alertou para o perigo eminente: “Bernardo, cuidado com o Lino nos escanteios”. Parece que o treinador previu tudo: Escanteio para o Palmeiras: bola alçada na área e Lino, aos 5 minutos do segundo tempo, empatou a partida: 1 a 1. Que boca, Cilinho!

A partir daí, o jogo passou por momentos de pura adrenalina, com chances de gols para ambos os lados. Aos 26, o garoto Marcelo entraria no lugar de Anílton para mudar a partida e gravar para sempre o seu nome na história dos duelos entre os rivais históricos.  Porém, ele demorou 19 minutos para pisar no palco. O estádio ficou às escuras justamente na hora que terminava o aquecimento. “Pensei que iria perder a melhor chance da minha vida”, comentou o atacante de 22 anos.

Susto de principiante. A energia voltou e Marcelo pôde finalmente pisar no gramado e ouvir seu nome entoado pela massa são-paulina. Antes de entrar, Cilinho mandou um recado, pelo rádio a Marco Aurélio Cunha, responsável pelo Depto. Médico e fiel escudeiro do ttreinador, ao nosso garoto prodígio: “Tenta levar o time pra frente”.

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Como um bom aluno, ele atendeu o mestre e, aos 57 minutos (38 no tempo corrigido), Marcelo recebeu um passe de Ney, levantou a bola ao dominá-la e pressentiu a chegada do zagueiro verde Nenê. Com um toque magistral, aplicou um lindíssimo chapéu no palmeirense e, para completar a obra prima, chutou forte, inapelável. A pelota morreu com prazer nas redes do arqueiro Zetti. A bola caprichosamente ainda bateu na trave e correu a linha para entrar no canto esquerdo: 2 a 1 e euforia no Pacaembu. Um gol de placa, daqueles que nos obrigam a sair do estádio e pagar o ingresso novamente.

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Fim de jogo e festa tricolor. Os repórteres avançaram em Marcelo, assustando aquele menino. “Foi tão bonito assim?”, questionava o feito, impressionado com o assédio. O artilheiro dos aspirantes teve seu dia de herói, mas que infelizmente, por razões que só a vida pode explicar, durou só uma bela tarde de domingo. Marcelo sumiu do cenário, assim como muitas outras belas promessas. Hoje, segundo o amigo Dr. Marco Aurélio, Marcelo trabalha com futebol lá na Grécia e está muito bem, obrigado. É a vida.

Ficha

Palmeiras 1 x 2 São Paulo

Terceira rodada da fase final do Paulista-88

Local: Estádio do Pacaembu, São Paulo (SP)

Árbitro: Ilton José da Costa

Renda: Cz$ 16.288.100,00 (Cruzados)

Público: 48.086 pagantes

Gols: Edvaldo (SP), 16 minutos do primeiro tempo; Lino (PAL), aos 5, e Marcelo (SP), aos 57 minutos do segundo tempo.

Cartões: Denys, Lino, Nenê (PAL) e Lê (SP)

Palmeiras: Zetti; Jairo, Márcio, Nenê e Denys; Lino, Gérson Caçapa e Célio; Tato, Rodinaldo (Barbela) e Ditinho Souza.

Técnico: Ênio Andrade

São Paulo: Rojas; Zé Teodoro, Adílson, Ivan e Ronaldo; Bernardo, Renatinho e Lê; Anílton (Marcelo), Ney e Edvaldo.

Técnico: Cilinho

Vídeos 

Globo Esporte 

https://www.youtube.com/watch?v=hb8fccLvRGY

Esporte Total – Bandeirantes 

https://www.youtube.com/watch?v=JyHFEavarFI

 

 

caricatura cesinhaCésar Hernandes, o Cesinha, tem 40 anos e muitos deles vividos com emoção por ter sido testemunha ocular de tantas conquistas do Tricolor. Jornalista de formação e historiador por devoção, crê que é importante preservar a memória são-paulina com textos e imagens que servirão de inspiração para as novas gerações.  Escreve nesse espaço todas as sextas-feiras.